Mal fora aprovada a proposta uruguaia, o governo do presidente Cimpistegui convocou a equipe responsável pela construção daquele que, segundo os uruguaios, seria o maior estádio do mundo. As ambições eram grandiosas, estimadas em mais de um milhão de pesos. Em oito meses atravessando a estação chuvosa projetou-se um colosso capaz de conter oitenta mil torcedores. Se chamaria Centenário, em homenagem à data que se comemorava no país. Enquanto trabalhadores uruguaios revezavam-se dia e noite para cumprir o cronograma das obras exigido pela estréia da competição, programada para 13 de julho, os preparativos para o embarque dos europeus chegavam ao fim. O navio Conte Verde – le bateau du footbull – zarpou de Gênova com a delegação romena.
No caminho, foram incorporados os belgas e os franceses. Também subiu a bordo Jules Rimet, zelando por sua pequena estatueta, a “Deusa das Asas de Ouro”, rumo à fase final de uma epopéia que fora idealizada há tantos anos, entre viagens, conferências e acordos. Dirigentes à parte, para a grande maioria a bordo do Conte Verde, esta seria a primeira viagem de navio. Foram quinze dias de banhos de piscina, tênis de mesa, cinema, carteado e, por vezes, exercícios físicos. Os iugoslavos, por sua vez, viajaram em separado em uma embarcação ainda mais confortável. Ao final da Copa, afirmou-se que os excessos nas noitadas a bordo teriam minado a capacidade da seleção iugoslava. Quase três semanas depois de deixar a Europa, tendo recolhido a seleção brasileira no Rio de Janeiro, o Conte Verde atracou em Montevidéu. Um espetáculo indescritível aguardava os enfastiados jogadores. Centenas de bandeirolas com as cores da França, Iugoslávia, Romênia e Bélgica tremulavam nas mãos da massa humana que aguardava, ansiosa, o desembarque.
Enquanto tudo parecia sair ainda melhor que o esperado, os organizadores do Mundial se viram diante do primeiro contratempo mais sério. Apesar de todo o empenho, o governo uruguaio anunciava que o Estádio Centenário ainda não estava em condições de inaugurar a competição. Alegava-se que os treze meses anteriores de chuva haviam comprometido o ritmo das obras, o que causaria um atraso de alguns dias para a inauguração. Como era impossível adiar todo o cronograma, a saída foi dar início ao campeonato assim mesmo. Na data marcada. 13 de julho, dois jogos foram realizados, ambos com um público muito modesto. No Estádio do Nacional F.C, a França entrou em campo para enfrentar o México, com vitória dos franceses por 4X I . Do outro lado da cidade, em Pocitos, no estádio do Penarol, os Estados Unidos venciam a Bélgica por 3X0.
Apenas no dia 18 o Estádio Centenário pôde, finalmente, ser aberto ao público. E não sem problemas. A massa, ansiosa, praticamente passou por cima dos policiais e até mesmo as bilheterias foram assaltadas. Como o dia da inauguração coincidia com a estréia da seleção uruguaia e com a data histórica da independência do país, comentaristas internacionais foram implacáveis com o governo de Cimpistegui, acusando-o de manobrar o atraso das obras para valorizar as festividades em torno da comemoração nacional. Certos ou errados, a verdade é que a seleção uruguaia entrou em campo sob os aplausos de 70.000 torcedores, divididos nas tribunas denominadas Colombes e Amsterdã, referência às vitórias olímpicas. Vivia-se um marco. Nunca na América uma partida de futebol havia sido contemplada por um público tão grandioso. Vencendo os peruanos, os uruguaios superavam seu primeiro desafio. Apesar do placar diminuto um simples 1 XO , a torcida acreditava muito no potencial da Celeste Olímpica e expectativas cresciam a cada dia. Aos olhos desta, parecia que apenas a seleção argentina podia ser uma adversária à altura, já que as lembranças da final dos Jogos Olímpicos de 1928 ainda estavam bem vivas e por pouco não levaram a Argentina a boicotar o Mundial. Um dos destaques da seleção uruguaia vinha sendo o médio Andrade, cérebro do time no bicampeonato olímpico, primeiro jogador negro a brilhar em uma Copa do Mundo.
Em Pocitos, quando estrearam contra a França, os argentinos sentiram a pressão da torcida local, que conclamava os franceses à vitória como se torcessem para a própria Celeste. Em um dos jogos mais conturbados do Mundial, o embate entre França e Argentina ficaria marcado pelo descuido do árbitro e dirigente brasileiro Gilberto Pereira Rego. Ele chegou a dar por encerrada a partida com 84 minutos de jogo, exatamente no momento em que os franceses, com um jogador expulso, lançavam-se perigosamente sobre o gol argentino, tentando empatar um jogo em que perdiam por 2X1. Mesmo com o reinicio da partida, após muitas confusões no gramado, a sorte não virou para o lado dos franceses, mantendo-se o placar favorável aos argentinos até o apito final. Perdido o jogo. sobravam em compensação as palavras e gestos de apoio por parte dos torcedores uruguaios. Aclamados pela garra em campo, alguns franceses chegaram a ser carregados nos ombros como vencedores. Na perspectiva da garra charrua, marca indelével do futebol uruguaio, talvez fossem vistos como vitoriosos de fato.
Viriam os momentos decisivos da competição e as expectativas da torcida uruguaia pareciam se confirmar. Na primeira semifinal, no dia 26 de julho, Argentina e Estados Unidos fizeram um jogo que não demonstrava ser capaz de muitas surpresas. Os torcedores argentinos acreditavam tanto na vitória que “invadiram” Montevidéu em embarcações fretadas especialmente para a partida. Apesar de contar com jogadores escoceses naturalizados, para os observadores mais realistas a seleção estadunidense não parecia ser uma adversária à altura dos argentinos. Em campo, Stabille e Monti comandaram a goleada argentina por 6X 1, com a maioria dos gols marcados no segundo tempo. O árbitro da partida, o famoso belga Jan Langenus, que registraria suas impressões sobre a Primeira Copa do Mundo em um livro de reminiscências, ficou deslumbrado com a atuação argentina, chegando a considerá-la simplesmente a apoteose da perfeição em campo.
No dia seguinte, no Centenário, uma nova goleada incendiaria o Mundial. Era a hora de o Uruguai enfrentar a Iugoslávia diante de mais de cem mil espectadores. Enquanto o mercado negro funcionava a pleno vapor vendendo ingressos que deveriam estar nas bilheterias, Montevidéu parava para a partida que poderia levar a Celeste Olímpica à final. Em uma atuação polêmica, mais uma vez a arbitragem roubou a cena, favorecendo os uruguaios ao anular um gol iugoslavo, além de uma série de outros lances tidos como duvidosos. Ao final, o Uruguai alcançaria o mesmo placar obtido no dia anterior pela Argentina: 6X1. Como não havia sido prevista decisão do terceiro lugar, norte-americanos e iugoslavos acabaram dividindo a colocação.
O anticlímax da Final não poderia ser mais emocionante. Argentina e Uruguai de fato tinham se mostrado as melhores equipes da competição. De longa data, já se anunciava a feroz rivalidade, forjada nos muitos embates travados em terras sul-americanas e européias. Os torcedores argentinos saíam do Prata ao coro de Argentina si, Uruguay no! Victoria o muerte!, chegando aos milhares em Montevidéu. Em meio à euforia e à desorganização, muitos barcos ficaram encalhados no meio do caminho. Isso sem falar nos tantos argentinos que ficaram fora do estádio, já que a cota de ingressos destinada a eles não era suficiente para todas. Para as autoridades uruguaias, os problemas multiplicavam-se a todo instante, tornando o que deveria ser a final dos sonhos em uma grande preocupação.
A imprensa alimentava um verdadeiro clima de guerra. Discutia-se até em relação à bola a ser utilizada na Final. A delegação argentina exigiu segurança especial, garantida pela polícia montada, enquanto Jan Langenus, árbitro designado para o jogo, tomou providências especiais, temendo por sua própria segurança e dos auxiliares. Até mesmo as bilheterias foram reforçadas com grades, visando assegurar o “bem-estar da renda”. Na véspera da partida, o famoso cantor Carlos Gardel, entusiasta do futebol, apareceu na concentração dos uruguaios, onde chegou a apresentar-se para os jogadores. Como sua mãe era uruguaia, Gardel decidiu prestar uma homenagem à Celeste. Algumas horas mais tarde, foi a vez de visitar a seleção argentina, sendo recepcionado com menos entusiasmo pelos argentinos, um tanto quanto enciumados por não terem sido os únicos a receberem as congratulações do cantor.
Chegada a hora da decisão, o Estádio Centenário parecia explodir em vibração. Apesar da torcida uruguaia, o time da casa não começou tão bem quanto se esperava: abrindo o marcador aos doze minutos com Pablo Dorado, o Uruguai mal teve tempo de respirar, pois os argentinos empataram logo em seguida. Alguns minutos depois viria a virada argentina nos pés de Stabille, consagrado artilheiro da Copa, silenciando por completo as tribunas do Centenário. Iniciado o segundo tempo, os uruguaios demoraram um pouco para reagir de fato. Aos dez minutos que, para a torcida, pareciam uma eternidade, foi consumado o gol de empate. Ganhando confiança e impondo seu jogo, o Uruguai marcou mais dois gols com Iriarte e Castro, liquidando a fatura e sagrando-se o primeiro campeão da História da Copa do Mundo.
A torcida presente no Centenário delirou e muitos se julgavam tricampeões, pois já vinham contabilizando as vitórias olímpicas. Ao som dos apitos e sirenes que ressoavam no porto, Jules Rimet entregou o troféu ao capitão uruguaio, enquanto o presidente Cimpisgueti decretou que o dia seguinte seria feriado nacional. Nas ruas, entretanto, muitos distúrbios envolveram os torcedores rivais, com insultos e brigas marcando a despedida dos argentinos de Montevidéu. Atritos continuaram nas fronteiras por mais alguns dias e até mesmo a Embaixada do Uruguai em Buenos Aires chegou a ser apedrejada. O Mundial estava lançado. A esta altura, poucos ousariam duvidar do poder do jogo.
Fonte:Gilberto Agostino