….ou ainda, Eu Nunca Deixei de Acreditar
“- Mas… mas… Isso é impossível! – gritou ele, atônito.
– Não. É apenas muito, muitíssimo improvável.”
Existem momentos. Existem mistérios. E existem os deuses. Sim, os deuses. Aqueles mesmos que eu canto, vez por outra, e em quem alguns de vocês se recusam a acreditar. Os deuses da bola, que sabem quando devem agir, e quando devem esperar.
Os mesmos deuses que têm sido tão atacados esse ano por aqui. O Brasil demorou mais de 100 anos pra ter um campeonato de verdade. Era a vergonha maior: o país do futebol passou um século vivendo apenas com “torneios” ou
“taças”, e só em 2003 ganhou o direito de ter um campeonato. O sonho durou dois anos. No terceiro, resolveram dar um jeito de voltar à bagunça cotidiana. Jogos anulados, resultados manipulados, equipes com jogos a mais
ou a menos, times jogando cinco vezes em oito dias. O feijão com arroz que nos acostumamos a achar “normal”.
Os deuses a tudo assistiram, impávidos. Esperavam o seu momento para agir, castigar os responsáveis pelos sacrilégios cometidos. Para grandes males, grandes remédios. Eles foram dando sinais de que algo especial estava para acontecer. Os ateus se recusavam a percebe-los, mas eles eram visíveis, como nuvens escuras prenunciando a tempestade redentora.
E ela veio, como não poderia deixar de vir.
Recife, Estádio dos Aflitos, 26 de novembro de 2005. Náutico e Grêmio decidem uma vaga na primeira divisão em 2006. O Náutico não pode mais disputar o título, mas precisa da vitória pra garantir o acesso à divisão superior. Já o Grêmio pode até ser campeão da segundona, basta vencer o jogo. Porém, entra em campo cauteloso, jogando com o regulamento, sabendo que o empate é suficiente para a subida. E como o Santa Cruz perde o outro jogo, contra a Portuguesa, esse empate é também o que basta para o título.
Por isso, uma retranca, uma estratégia de bloquear o jogo e não correr muitos riscos além do necessário. O Náutico, claro, tem que fazer o papel do gato, e parte para o ataque, embora sem muita qualidade. O tempo vai passando, o Náutico (”gato”) tem o domínio territorial do jogo, fica com a bola mais tempo, ataca mais, mas o Grêmio (o “rato”) vai levando a sua tática avante, conquistando o seu objetivo.
É quando o soprador de apito de plantão, senhor Djalma Beltrani, resolve começar a tentar desequilibrar o jogo, e ajudar o gato a fazer o que ele não consegue fazer sozinho. Um jogador do Náutico mergulha na área, e Djalma apita. Um penalti que se não é escandaloso é no mínimo muito duvidoso.
Bruno Carvalho bate, e a bola explode na trave. Os deuses deram o primeiro aviso. Hoje não!!!! Já basta tudo que fizeram durante o ano, vocês já se divertiram bastante inventando lances, anulando jogos, determinando resultados. Hoje não!
Mas o homem moderno não acredita em deuses. E não vai ser um aviso leve desses que vai fazer isso mudar. Os deuses balançam a cabeça. Homens de pouca fé. Vai ser preciso empregar uma dose maior.
O jogo continua na mesma toada. O gato corre a casa toda, sem objetividade, o rato dá algumas estocadas ocasionais, mas também não consegue levar o queijo à toca. O jogo caminha para um 0×0, se algo não for feito para mudar o equilíbrio.
Bem, se um pênalti não deu certo, que tal tirar um jogador do Grêmio? E é assim que o lateral Escalona é expulso, num lance um tanto quanto inexplicável. Os jogadores gremistas reclamam, sem entender que neste momento já são apenas peças num jogo muito maior que eles.
O Grêmio, com um a menos, se fecha ainda mais, segurando heroicamente o empate, e deixando apenas Ânderson isolado, para tentar algum contra-golpe. E o gato continua a caçada. O jogo começa a ganhar um leve tom épico. Garantir a classificação, na casa do adversário, com uma arbitragem
desfavorável, e com um jogador a menos, seria um grande feito.
É quando o temerário Djalma resolve desafiar de vez o poder dos deuses. Ah, incrédulo Djalma! Ah, tolo irreverente! Se tivesses percebido a mão divina, se tivesses visto os sinais, talvez as coisas ficassem por aí. Talvez os deuses se dessem por satisfeitos com o 0×0, com a heróica defesa do castelo
levada a cabo pelos tricolores. Mas não! Não, ó impenitente juiz! Tinhas que mostrar que os deuses não existem! Tinhas que mostrar que és tu que decides o resultado. Tinhas que inventar mais um penalti absurdo!
E é o que ele faz. Os jogadores do Grêmio, compreensivelmente, se desesperam. É demais. Primeiro, o pênalti. Depois, a expulsão. Agora, isso. O trabalho de um ano jogado no lixo em 90 minutos, por causa de uma arbitragem desastrosa. O tempo fecha. Os jogadores cercam Djalma. Três jogadores são expulsos. Mesmo que o penalti não entre, serão sete ratos cansados para tentar parar onze gatos famintos. Impossível. A torcida gremista, cabisbaixa, não quer acreditar no que vê.
Anoiteceu em Porto Alegre.
(Em algum lugar que não podemos revelar onde fica, os deuses sorriem.)
Vinte e poucos minutos depois, o “Rapidão Cometa” parte da marca do penalti em sua interminável jornada rumo à rede adversária. Longos milésimos de segundo, que terminam nas mãos de Galactus, Gallato, o goleiro mediano com nome de chocolate que é alçado à categoria de devorador de mundos e
candidato a herói.
A bola não entra. Plunct Plact Zum, o “Rapidão Cometa” não vai a lugar nenhum. O “Coração de Ouro” bate mais forte, com a dose extra de combustível que recebeu.
Agora são os jogadores do Náutico que parecem não acreditar no que aconteceu. Não percebem que não é nada pessoal. Eles apenas estão no lugar errado, na hora errada, destinados a fazer o papel secundário na ópera armada pelos deuses.
O que acontece no minuto e meio seguinte é simplesmente um dos momentos mais incríveis da história do futebol. Inesquecível. Um momento daqueles que torna privilegiados os que o assistem, e dignos de pena aqueles que não o viram. (Pra não falar daqueles que, tendo olhos, não viram, tendo ouvidos, não ouvem.)
É um sonho, um momento paradoxal. Paradoxal, sim. Por um lado, basta fechar os olhos, e o filme está inteiro na memória, e ficará assim pra sempre, cada cena, cada segundo. Mas por outro lado… a cada vez que relembro, duvido um pouco dos detalhes, e chegará o dia em que mesmo nós, aqueles que vivemos, iremos duvidar da sua realidade.
Ânderson, rato atrevido, parte pela ponta, pra cima de Batata, o gato gordo. O gato, inebriado pela superioridade, dá uma patada no ratinho, e não sobra outra alternativa pra Djalma a não ser expulsa-lo. Dez contra sete. Ainda é muita diferença, mas nem tenho tempo pra pensar nisso. Ânderson levanta, e segue seu caminho, segue rumo ao seu destino programado.
Ele entra pela cozinha, no meio de dois gatos tontos com aquela audácia. Mas como aquele rato ainda não percebeu que ele está morto? E Ânderson vai, avança, rumo ao meio da área, driblando a oposição.
Se isso fosse um jogo de futebol, ele podia ser parado. Mas não era. Já tinha deixado de ser um jogo há muito tempo. Ali, ele não era mais Ânderson, o camisa 17 do Grêmio. Ele era Ânderson, o escolhido, o mensageiro dos deuses, aquele que tinha um recado a dar aos que não acreditam.
E foi assim, aos 61 (61!!!!!) minutos do segundo tempo, que a palavra se fez ouvir, através do seu profeta. A bola encosta mansamente no fundo da rede.
O Grêmio é campeão.
Eu nunca deixei de acreditar! Eu nunca deixei de acreditar!
O sol brilha, azul, no céu negro.
Amanheceu em Porto Alegre.
Eu não vou ser doido de tentar descrever a minha reação depois disso. Eu não vou ser louco de tentar imaginar o que sentiu um gremista, em Porto Alegre, vendo esse jogo. Eu não vou ser maluco de tentar sequer sonhar com a sensação de viver um momento desses no estádio.
Só vou dizer que isso, senhores, isso é futebol. Não são 22 jogadores correndo atrás de uma bola. Não é uma mesa redonda discutindo sobre as vantagens do 4-3-3. Tudo isso faz parte, mas não *é*. Assim como futebol não é apenas um gol bonito, um drible bem dado. Isso é arte. E futebol pode ter traços de arte, mas não *é* arte. Futebol é algo além. Futebol é um título ganho aos 61 minutos do segundo tempo, com sete jogadores em campo, e um juiz trapalhão complicando tudo. Futebol é sangue, é suor, é lágrimas. É alma.
Ou, como diria Bobby Robson, “Futebol não é um caso de vida ou morte. É algo muito maior que isso.”
Caio de joelhos, agradecido aos deuses por, uma vez mais, mostrarem a sua força a nós, os que acreditamos sempre. Essa foi a prova de que mesmo com todos os “erros”, toda a manipulação, toda a politicagem, tudo isso que aconteceu esse ano, ainda existe algum espaço pra magia do futebol.
Sinto minha alma lavada, purificada de todos os Zveiters e Cia. Em qualquer época, esse jogo seria especial, fantástico, inesquecível. Mas nesse ano, ele foi ainda mais. Ele foi simbólico, em vários sentidos.
“Eu vou contar isso pros meus netos, daqui a 50 anos, e eles vão me chamar de mentiroso”. Marcelo Costa, meia do Grêmio.
É isso. E bem-aventurados os que viveram esse momento. Felizes os convidados para a ceia.
Finalizando, não posso deixar de fazer um agradecimento e um cumprimento.
Primeiro, o meu muito obrigado ao senhor Djalma Beltrani. Sem ele, nada disso seria possível. Gallato e Ânderson podem dividir as honras de “herói do jogo”. Mas não vamos nunca esquecer que o sr. Beltrani é o principal responsável por termos vivido essas emoções. Sem ele, não haveria os penaltis, nem as expulsões. Sem ele, o título do Grêmio seria mais fácil, mas muito menos significativo. A torcida gremista devia entregar uma medalha a ele, a diretoria lhe dar o título de sócio honorário. Com suas lambanças, Djalma Beltrani fez pelo Grêmio algo muito maior do que a imensa maioria dos beneméritos do clube. Ajudou a criar uma lenda que irá acompanhar o Grêmio por décadas.
Muito, muito obrigado, senhor Beltrani. Do fundo do coração.
O verdadeiro campeão de 2005 é o Grêmio. Eu sempre pensei que 2005 seria marcado como “aquele ano do Zveiter, e dos juízes que roubaram, e dos jogos anulados, em que o Corinthians ganhou o título por causa disso”, mas agora tenho certeza que 2005 será sempre “o ano daquele título do Grêmio”.
É ou não é uma sorte?
cap.navarre@gmail.com