O Benfica na Bahia

* Comemoração aos cinquenta anos da presença esportiva portuguesa no Brasil

Portugal tem uma relação secular com o Brasil. Mas nem tudo foram flores entre os dois territórios, particularmente com a conquista e a integração no império português. A Bahia foi peça central nesta relação. Foi a ela que se dirigiram as primeiras expedições lusitanas. Onde se estabeleceu em 1549 a sede política, administrativa e religiosa do império no que seria o continente americano. Seria ali o local escolhido, pelo então príncipe Dom João, para aportar a sua comitiva quando da transmigração ao país em 1808, e pela revolução liberal portuguesa para a eleição de deputados quando da Assembleia Constituinte do império.

Quis o destino que no solo da Bahia se travasse a maior de todas as guerras entre os dois países, que iria consolidar a sua separação orgânica em 1822/1823. Durariam ainda, porém, mais de seis décadas os monarcas portugueses em solo brasileiro. As relações entre os dois países continuaram no regime republicano, nos campos econômico, científico e sócio – cultural, mas se estenderam a novas direções, entre as quais o esporte.

A descoberta do futebol guarda diferenças substanciais entre os dois países. Embora o esporte chegasse a ambos por intermédio dos ingleses, os protagonistas no Brasil foram estudantes, trabalhadores e moradores de bairros populares, enquanto em Portugal foram os colégios. O Brasil chegou primeiro a experimentar certa organicidade e popularidade no esporte, enquanto Portugal só consolidaria a federação portuguesa em 1926. No entanto, aquele organizaria muito cedo as suas divisões. Enquanto isto, mesmo possuindo a CBD desde idos tempos, a falta de centralização nacional e a politicagem fariam com que só se organizassem campeonatos brasileiros nos anos 70. Quanto às divisões apareceram muito mais tarde, até hoje se constituindo um “Deus nos acuda” quando um clube grande é ameaçado de rebaixamento.

O futebol português e brasileiro tem outra diferença fulcral. Enquanto no primeiro há três clubes de expressão mundial (Benfica, Sporting e Porto) que dividem grande parte dos títulos portugueses, no segundo há equilíbrio entre os grandes clubes onde o “papa títulos” é o São Paulo, com apenas seis campeonatos brasileiros. O intercâmbio futebolístico entre os dois países em todo este tempo foi praticamente nulo, sendo difícil descobrir jogos entre clubes portugueses e brasileiros nas primeiras cinco décadas do “século do futebol”.

Os anos 60, porém, iriam terminar com este isolamento. Já desde a década anterior haveriam confrontos esparsos em excursões de clubes brasileiros pelo solo europeu. Em 1960 o Sport Lisboa e Benfica faz uma excursão histórica ao Brasil e, por fim, dois anos depois, o mundo seria contemplado com a inédita decisão de um título mundial entre Santos FC e SL Benfica em 1962. Abria-se uma nova era nas relações desportivas entre os dois países, que, com o fim das ditaduras (da salazarista e da dos generais brasileiros), haveria de se consolidar em outros terrenos.

O Sport Lisboa e Benfica, é honra e glória do futebol português. A equipe encarnada ocupa o nono lugar entre os clubes de todo o mundo pelo levantamento do IFFHS. Tem 32 campeonatos, 24 taças, e 4 supertaças em Portugal, além de dois títulos de campeão europeu, um deles do próprio ano em que esteve no Brasil, quando bateria o Barcelona por 3 X 2.
Assim, o clube esteve na Bahia no auge de seu prestígio, inclusive como campeão português. Desde que se soube da sua excursão ao Brasil o próprio presidente da antiga Federação Baiana de Desportos Terrestres – FBDT intercedeu nas negociações.

Foram ao todo oito jogos cumpridos pelo elenco português. Jogou no Rio de janeiro, contra Flamengo e América, empatando em ambas as ocasiões. Em São Paulo perderia do Santos FC e derrotaria de forma convincente o Palmeiras (3 X 0). Só então aportaria na Bahia. Eu ainda tinha doze anos e meu pai não me levaria a nenhum dos dois jogos.

Na presença do Benfica havia só um problema a considerar. Haviam sido acertados jogos contra o EC Bahia e o EC Vitória. Mas, no entanto, o primeiro, que tinha previsto chegar nesse período de excursão á Europa, não conseguiu chegar para a estreia do escrete lusitano em 28 de julho de 1960. Assim, o tricolor teve que colocar o que o Diário de Notícias da época chamou de um time “misto”, onde se dizia que empregaria alguns profissionais que haviam ficado completando o time com juvenis.

No entanto, não foi bem assim que as coisas aconteceram. É certo que os titulares do EC Bahia estavam na Europa. No entanto, o clube havia se preparado para esta situação deixando em Salvador um segundo time com o qual colheu expressivas vitórias no campeonato local e até em amistosos importantes. Mais tarde, com o retorno da Europa, o Bahia aproveitou vários daqueles que formavam o “misto”, inclusive, todo o ataque. Parece-me ter contribuído para esta atitude do jornal, integrante da cadeia dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, uma combinação de decepção (em função do time tricolor não ter chegado a tempo do jogo) com o receio   de que o segundo time tomasse uma goleada. 

O Juiz da partida foi José Cavalcanti Brito, tendo como auxiliares José Tosta e Willer Costa. O Diário de Notícias divulgou a renda de 600.250 cruzeiros, alertando inclusive para o fato de que os preços tinham “afugentado muito os torcedores”. Se compararmos com o recente BA-VI (605.485 cruzeiros), onde o Vitória ganharia o primeiro turno, a renda foi mesmo sensacional, atestando a expectativa na Bahia com a presença portuguesa.

O público que foi a Fonte Nova não viu só qualidade, mas também quantidade. Houve duas preliminares (!), a primeira começando às 12h00min, e a segunda às 14h00min, envolvendo aspirantes e profissionais de Fluminense de Feira de Santana e Galícia pelo primeiro turno do Campeonato Baiano.  �

Os times do jogo principal entraram em campo ás 16h00min. O Benfica com Bastos (Costa Pereira), Calado (Zezinho) e Arthur (Calado); Pegado, Alfredo e Ângelo; Palmiro, Coluna, Águas, Calado (Salvador) e Cavém. Já o Bahia peleou com Cavezali, Calmon e Chagas; Bombeiro, Marivaldo e Florisvaldo; Biriba (Frader), Aduce, Rui Tanus (Evandro), Careca e Olício (Carlito).
Águas (Benfica) abriu o marcador logo aos cinco minutos, acentuando o receio dos Diários Associados. No entanto, Aduce empataria pouco depois e, Careca, “viraria” o jogo antes do fim do primeiro tempo.

O intervalo foi de muita alegria para os baianos, que cresceria quando o EC Bahia, aproveitando a ofensividade dos portugueses desde o início, amplia com Rui Tanus. De nada adiantaram as pressões benfiquistas, a sorte estava neste dia com o tricolor, que ainda “fecharia o caixão” da goleada com Biriba aos 19 minutos. Naquele dia, que olhasse para o placar do Dique não acreditaria no que estava vendo: Bahia 4 X 1 Benfica. Ficou nisto até o fim.
O Diário de Notícias fez um escarcéu, dando amplo destaque para a vitória do “misto” tricolor contra o esquadrão benfiquista.

A maior derrota de sua excursão pôs em polvorosa os portugueses, que passaram a dar muito mais atenção ao segundo jogo, que seria realizado dois dias depois. Mas aí aconteceu a surpresa, com a chegada da delegação do Bahia da Europa. A torcida e a imprensa não cabiam de contentes. Se com o “misto” tinha dado de quatro, imaginem o que ocorreria com o Benfica quando o tricolor usasse o titular? Nesse dia acredito que todos por aqui se sentiam como o filme que passava no Cine Guarany estrelado por Gene Kelly, Dançando nas nuvens. 

Os dois clubes entraram em campo para a revanche no dia 30 de julho com o mesmo juiz e bandeirinhas. A renda “não foi fornecida”, sendo calculada pelo Diário de Notícias em 700.000 cruzeiros. O Benfica fez algumas modificações na defesa e o Bahia manteve alguns jogadores do “misto”. Os portugueses entraram com Costa Pereira, Zezinho (Calado), Artur e Alfredo; Pegado e Ângelo; Palmiro, Coluna, Águas, Calado e Cavém. Já o Bahia jogou com Jair, Bacamarte (Rui) (Joca) e Henrique; Jota Alves, Vicente e Florisvaldo; Frader (Biriba), Wassil, Carlito, Otoney e Isaltino (Olício).

Mas desta vez o Benfica não daria chance ao Bahia! Logo no primeiro tempo já estava dois a zero, com gols de Águas e Cavém. No segundo tempo preferiu administrar o resultado, dando margem as pressões do Bahia que chegaria a diminuir com o ponta Biriba. No outro dia o patriótico Diário de Notícias daria pouco destaque ao resultado. Quanto ao Benfica cumpriria o resto da sua excursão mais animado, aonde iria ainda a Fortaleza e a Belém, e depois, aos Estados Unidos. Até o fim de nosso querido estádio, cinquenta anos depois, nunca mais veríamos a classe de Coluna e Aguas, e o garbo de Costa Pereira.

Um novo encontro entre baianos e portugueses estava marcada para alguns meses depois, quando o EC Bahia, desfrutando sua condição de campeão da I Taça Brasil, voltaria a Europa, passando por Portugal. Mas aí as coisas seriam bem diferentes. O adversário foi o Sporting que não teria perdão, enfiando cinco a um.

O Diário de Notícias local (26/10) porém atacou de novo. O árbitro teria sido “fraco”, truncando faltas e “prejudicando o Bahia”. Lembrou que Léo tinha aberto o placar no primeiro tempo e que só após a expulsão de Alencar, ainda no primeiro tempo, é que as coisas começaram a mudar com um gol de Seminário. Este repete a dose no início do segundo tempo quando o juiz teria anulado um gol de Biriba por impedimento. Mesmo assim, o jogo só teria se resolvido nos onze minutos finais, quando foram anotados mais três gols pelo time sportinguista.

Agora, porém, foi à vez do Bahia querer revanche, conseguindo novo jogo no encerramento da excursão á Europa. Na oportunidade o dirigente Osório Vilas Boas se notabilizou pela diplomacia, comparecendo, por exemplo, ao Conselho Municipal de Lisboa para entregar uma moção da Bahia aos portugueses. Não conseguiria recuperou o tricolor baiano da goleada mas, pelo menos, o empate de dois a dois causaria melhor impressão aos portugueses.

Esta história só acaba em setembro/outubro de 1962 quando da disputa da Copa Intercontinental, que no Brasil se chama Mundial de Clubes. Acompanhei pelo rádio cada momento dos dois jogos Santos X Benfica, e foi aí que conheci Euzébio. O primeiro era o clube que meu pai torcia em São Paulo. Naquele tempo era assim. Tendo em vista o papel secundário que o esporte do estado tinha no país, os baianos costumavam ter “três times”, um na Bahia, um no Rio e outro em São Paulo. Meu pai era Vitória, Botafogo e Santos, e seus filhos, naturalmente, também.

A crise política brasileira se ampliava e eu só pensava em futebol. Me lembro como hoje do emocionante jogo do Maracanã, com grande atuação dos dois clubes. Naquele 19 de setembro Pelé e Cia enfrentavam alguns dos jogadores que tiveram na Bahia dois anos antes. O primeiro tempo se encerraria com a vantagem santista mediante gol de Pelé. No segundo tempo o meia atacante Santana empataria, mas logo Coutinho, em admirável tabelinha, faria voltarmos novamente á frente. O jogo só seria decidido nos últimos minutos com dois gols seguidos, de Pelé e Santana, fechando o escore em três a dois para o Santos.

Mas os acontecimentos mais notáveis estavam guardados para o Estádio da Luz na noite de onze de outubro. A equipe benfiquista precisava ganhar e, por isso, desenvolveu um jogo ofensivo desde o início da partida. Não tomou cuidados especiais com o ataque do Santos que esteve iluminado, particularmente Pelé, que marcou três gols entre eles um, que se inscreve nos anais da história, em que driblou toda a defesa portuguesa. Quando os encarnados acordaram já estava cinco a zero, descontando apenas no final. Lá em casa não podíamos acreditar no que tinha ocorrido, 5 X 2, em pleno Estádio da Luz. Acho que foi o maior jogo da história. Pelo menos, de todos os que assisti pelo rádio.

• Agradeço ao Setor de Publicações Raras da Biblioteca Central do Estado – BCE pela Coleção dos jornais Diário de Notícias e Estado da Bahia e ao site www.sobre.com.pt.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *