Futebol de Várzea:A noite que o Flamengo passou um sufoco!!!

O Clube de Regatas Flamengo, que naquela noite se defrontava com o Colodino Atlético Clube em memorável contenda que entrou para a história futebolística gonçalense.
O Flamengo não veio completo, porém trouxe um timaço, com sensacionais craques que brilhavam no plantel principal naquele ano de 1962, se a memória não me está atrair. O Colodino também levou ao campo seus melhores jogadores, alguns já profissionalizados em clubes do Rio, mas com as pernas e os corações sempre defendendo o verde-esmeralda da camisa do melhor time de São Gonçalo.

O jogo correndo, na intermediária do Colodino emergia Carlinhos Danilo como um deus mitológico. Um craque, na mais pura e verdadeira acepção, aquele jovem. Até do seu nome emanava a poesia da bola que ele jogava com maestria. E mesmo debaixo de chuva e lama não havia uma jogada qualquer que não se concluísse magistralmente a partir da genialidade e dos maravilhosos pés de Carlinhos Danilo.
Ele era deslumbrante jogando, apesar de simples no toque perfeito da pelota. Aí residia, porém, a genialidade dele: na matada da bola no peito, do jeito que ela viesse, na subida elegante para o cabeceio, na parada da bola naquele piso encharcado, e ela, a bola, submissa a seus mágicos pés e saindo em direção milimétrica para a direita, ou esquerda, ou direto à área após o passe que ele dava, fosse qual fosse a perna.

Naquela noite de indizível emoção, eu, flamenguista doente, torcia para que o Colodino vencesse. E via, feliz, o respeito dos craques rubro-negros pelo meio-campista colodinense, um fenômeno que eles, os craques flamenguistas, não esperavam encontrar num time de várzea. Mas encontraram… E admiraram deveras aquele mágico da bola, ela, rolando ou parada, no drible ou no chute, no passe ou no cabeceio, enfim, um poeta da pelota vestido de verde-esmeralda e ensinando aos profissionais do Flamengo o valor de um craque amador.

E no gol? Sim, prezado leitor, sim, no gol estava outro monstro sagrado. Estava Derval, um elástico que se esticava firme no alto e no baixo. Eram muitas as bolas chutadas pelos craques adversários contra a meta do Colodino. Vinham quentes, sim, mas Derval delas não tomava conhecimento: voava veloz, e com precisão, e sempre catava a pelota com carinho, como se ela fosse assim sua namorada, porém com a firmeza de quem sabe o que faz. Ele estava vestido de preto, ostentando o escudo do Colodino na altura do seu coração, aquele que se confundia com este na vibração de um jogo inesquecível. E ainda havia o João Batista, goleiraço, cria da casa, que chegou a envergar a camiseta do Botafogo F. C. e também defendeu com amor as cores do Colodino. Revezava com Derval na tarefa de abraçar a bola que com eles dificilmente balançava a rede do verde-esmeralda. Eram barreiras intransponíveis, Joãozinho e
Derval.

Estava zero a zero. Assim correu o primeiro tempo, com o Flamengo bombardeando o gol de Derval. Contudo, do outro lado, também vestido de verde-esmeralda, havia Mimi. Sim, caro leitor, havia Mimi, o maior jogador de futebol que São Gonçalo já viu e tem guardado na memória. E lá estava ele, o ponta-de-lança do drible seco, da corridaem diagonal e do chute perigoso, sempre rasteiro e forte, atordoando os goleiros adversários. Mimi lembrava Dida, o estupendo atacante do Flamengo.
Naquela noite, sofriam com Mimi os beques e o goleiro do Flamengo, os primeiros sem conseguir dominar aquele endiabrado atacante, e o segundo voando nervoso e a toda hora atrás de segurar a bola quente arremessada pelos pés mágicos de Mimi e do seu parceiro Loloca. Sim, Loloca, na dianteira do Colodino, também a levar cabelos brancos às jovens cabeças dos jogadores do Flamengo. Era Loloca o centroavante de ébano, o nosso Pelé gonçalense, sem tirar nem pôr.

Sim, sim, Loloca era um negro que brilhava dentro de campo, brilhava na cor e na bola. Na subida para o cabeceio, dentro da área, ele parecia o verdadeiro Pelé, o monstro sagrado do futebol. Mas Loloca ficou por São Gonçalo deleitando os torcedores do Colodino A. C. e às vezes do E. C. Peixoto nos domingos de futebol.Trabalhava no Departamento de Estrada de Rodagem.Também Mimi trabalhava no DER, como topógrafo, apesar de ter jogado profissionalmente no Bonsucesso e no Vasco da Gama. Mimi foi traído por uma contusão no joelho que lhe encerrou a carreira num piscar de olhos. Mas continuou atuando no futebol amador, sempre maravilhoso aos olhos de centenas de assistentesque se apinhavam nas beiradas dos campos somente para vê-lo atuar, como eu muitas vezes o fiz.

O jogo corria debaixo da chuvarada. O campo estava marrom da lama solta pelas ferozes chuteiras dos vinte jogadores. Debaixo das balizas havia um mar de água barrenta, com os goleiros literalmente nadando e mergulhando atrás da bola molhada e pesada. No campo, a habilidade dos atletas estava explorada ao máximo, com muitos deles vencidos por escorregões inevitáveis. Mas aí é que aqueles craques se superavam, proporcionando raro esplendor à noite feia.
Poderia o leitor imaginar que somente havia em campo esses craques. Não, não, o Colodino colocara outro monstro sagrado: Tião da Sá Pinto. Este, um mulato de mais ou menos 1,70m de altura, voz fininha a gritar: “Vai, fulano!” Fazia da bola a sua companheira íntima. Tanto como os demais que aqui enalteço, Tião da Sá Pinto, nome da rua em que morava, jogava como ninguém. Apresentava um lindo toque de bola, extraindo suspiros e exclamações de admiração.

Naquela noite Tião estava magistral. Deixava atônita a defesa do Flamengo, caindo na direita ou na esquerda do meio-de-campo, num revezamento que não lhe alterava a qualidade. Em ambas as situações ele era um perigo para a defesa adversária, esta que não sabia como parar seus passes de mágico endereçados aos atacantes Mimi e Loloca, e nos dribles secos que a toda hora aplicava nos atônitos adversários. Eta linha de ataque maravilhosa!
A bem da mais pura verdade, não eram somente esses endiabrados craques que deslumbravam os assistentes. Havia Jorge Calheiro, bom de bola e de canto, seresteiro de renome. Mas na bola era maestro, assim como na música. Havia o grandioso zagueiro central Bringela segurando a garotada rubro-negra, ele, o mais velho dentro do campo, o vovô do time, porém com uma saúde de invejar.

Ao lado de Bringela estava Nonô, o beque direito. O homem não era de brincadeira.Jogava leal, mas com um rigor de assustar os adversários. Era um touro de tão forte e chegava duro na bola. Não perdia uma dividida, a bola era dele, ganhava-a na marra e saía jogando com classe. Mas sua cara feia assustava. Sim, assustava deveras os incautos atacantes que para ele olhava. Não era cara de muitos amigos, mas tudo somente impressão, porque Nonô jogava com lealdade. E muito bem, por sinal.
Esse era o time, ou melhor, a espinha dorsal de um plantel estupendo que nunca será esquecido. É certo, porém, que não lembrei de muitos nomes, e talvez tenha errado na grafia de alguns que nomeei; mas não o suficiente para deixá-los anônimos por confusão. O que está escrito, com certeza, basta para que eles sejam reconhecidos por todos quanto os viram jogar. E aqueles que não os viram, saibam que muito perderam…
O jogo corria suado, o Flamengo de um lado e o Colodino do outro, misturando os craques o suor com água e lama. Mas o gol não saía, e eu, na beirada do campo, torcia, nervoso, admirando a genialidade daqueles craques. E ocorreu o primeiro gol,do Flamengo, marcado talvez por Espanhol, se a memória me não está a falhar.Confesso que tremi, achando que aquele um a zero poderia se transformar egoleada. E comecei a sonhar ali mesmo, debaixo da chuva, de os olhos abertos.
Sonhava com os reforços gonçalenses que poderiam estar completando aquele timaço do Colodino. Sonhava com Antônio Carlos, Mimi e Loloca se revezando com Careca, do Nacional Esporte Clube, outro timão de São Gonçalo. Careca lembrava Reinaldo, o maravilhoso craque do Atlético Mineiro, mas com a mesma qualidade.
Careca tinha a velocidade do tufão com a bola nos pés; gingava na frente dos beques e sempre os deixava a ver navios enquanto a bola sacudia a rede adversária.Sim, Careca era um goleador que fazia estremecer as melhores defesas. E, junto com Antônio Carlos, Mimi e Loloca, que quarteto maravilhoso seria! Não resisto em novamente exclamar: Que linha de ataque maravilhosa!… Que trabalho os defensores rubro-negros teriam naquela memorável noite!…
E foi quando quase ocorreu o gol do empate, através de Mimi, em estupendo petardo que ele mandou contra a meta do Flamengo. O goleiro pegou. Todavia, a vibração foi total. Agora, quem estava a tremer era o timaço do Flamengo, que não esperava encontrar tanta dureza pela frente. Mas eles, os rubro-negros, também eram espetaculares em campo; e sem o reforço por mim sonhado o jogo terminou com mais um gol dos rubro-negros. Dois a zero, no final. Não foi um justo resultado, sem demérito do vencedor.

Em boa hora a lembrança de Careca me fez ver em campo, no meu sonho acordado, outros craques que gravaram seus nomes na memória futebolística gonçalense. Sim, sim, havia Lulinha, cria do Colodino, que foi titular do Fluminense nos anos sessenta, e ainda havia os irmãos Paraquett, Tunico e Luiz Carlos, dois maravilhosos craques da bola e jogadores do Esporte Clube Peixoto.
Tunico, na posição de zagueiro central, era um monstro sagrado. Não havia em São Gonçalo um beque melhor. No tiro de meta, ao repor a bola em jogo, tanto fazia se ela estivesse em posição de ser chutada pelo pé direito ou pelo esquerdo. Tunico batia igual com as duas pernas e colocava a esfera onde queria. No cabeceio dentro da área,até mesmo o genial Loloca respeitava o baixinho Tunico, cuja impulsão ultrapassava em altura o Pelé gonçalense. Tunico era efetivamente um leão em campo, mas nunca deu pancada em ninguém. Deslizava entre as pernas dos atacantes e lhes tomava a
bola. Nunca os tocava em falta. Era, sim, delicado dentro e fora do campo.
E Luiz Carlos Paraquett?… Este jogava no meio-de-campo, como o mestre Carlinhos Danilo, mas sem perder em qualidade para aquele outro. Luiz Carlos era magrelo e pouco mais baixo que Carlinhos Danilo, com quem formou, quando juntos jogaram, Carlinhos Danilo também envergou, numa época, a camisa tricolor do Esporte Clube
Peixoto,o mais espetacular meio-de-campo que se pode imaginar existir ou ter existido no futebol amador. E não seria demais afirmar que, se ambos tivessem formado em algum time profissional, seriam destacados como sérios ocupantes da intermediária da Seleção Canarinho.

Luiz Carlos, carinhosamente apelidado por “dez letrinhas”, parecia ter elástico no corpo. Era uma enguia com a bola nos pés, capaz de aplicar nos adversários os dribles mais desconcertantes. No passe, era um perfeccionista, não escolhendo perna para jogar. Era simplesmente assombroso, e que o digam aqueles que o enfrentaram em campo. E era um implacável goleador, como o é atualmente o Marcelinho do
Coríntians, capaz de destronar qualquer goleiro.
Os atônitos jogadores do Flamengo certamente vieram a São Gonçalo, naquela noite, pensando em golear um timeco qualquer. Estavam enganados, redondamente enganados. Mas, diga-se a bem da verdade, o time rubro-negro não veio a São Gonçalo pra levar derrota.
Fim de jogo, dois a zero para o Flamengo, e os comentários nunca mais pararam.
Resistem até hoje à passagem dos anos. Alguns dizem que, se o tempo estivesse bom,o Flamengo sairia do campo do Tamoio com uma fragorosa derrota; outros já ousam afirmar que seria o contrário, que o Flamengo venceria, como de fato venceu, aquele jogo. Eu particularmente acho que não seria bom nem mesmo para a Seleção Brasileira enfrentar aqueles craques gonçalenses em noite de inspiração.
Diriam muitos que exagero, e alguns que os craques de várzea jamais ultrapassariam o brilho efêmero do futebol local, dos jogos em campos ruins e das carreiras curtas, logo trocadas por proeminentes barrigas de bebedores de cerveja.
Talvez, talvez… Mas continuo achando que o Flamengo teria levado uma surra naquela noite se estivesse em campo o time gonçalense dos meus sonhos. E se arrependeria de ter vindo a São Gonçalo enfrentar os craques do futebol amador daquela terra.
Tanto é assim que até hoje esses jogadores estão vivos na memória popular gonçalense, enquanto que os profissionais flamenguistas não têm mais seus nomes sequer lembrados.
Loloca e os irmãos Luiz Carlos e Tunico Paraquett estão mortos. Mas nunca serão esquecidos naquelas paragens que formam os bairros do Desvio de Dona Zizinha,

Naquela memorável noite, diga-se de caminho, acho que somente jogaram Loloca,Carlinhos Danilo, Derval, Mimi, Nonô, Jorge Calheiro e Tião da Sá Pinto, entre os demais que aqui homenageei porque sonhei com esses jogadores num mesmo time.
Mas não importa se há algum esquecimento. E muito menos importa o fato de muitos não terem conhecido os jogadores que aqui me referi. Porém, é fácil trocar esses nomes por outros, assim como é simples imaginar outras cidades, outros campos e outros times de várzea. Pois o que efetivamente tem importância é o registro de uma época em que o futebol amador às vezes revelava um jogador como Garrincha. Sim,havia muitos campos de várzea. Não como hoje: os campos se escassearam e os craques de futebol amador ficaram na lembrança dos mais velhos, tal como agora o faço. E quantos craques,como Garrincha, poderiam ter sido revelados como naqueles tempos em que sobravam campos para o povo simples jogar?..

Fonte:www.emirlarangeira.com.br

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