Corria o ano de 1982. O futebol brasileiro ainda sangrava a derrota de Sarriá e procurava por novos heróis, ou por algo que devolvesse o sentido à bola que se jogava. No meu caso, um garoto de nove anos que teve na Copa da Espanha sua primeira desilusão amorosa, algo que devolvesse o sentido à vida que se vivia, depois do sonho destroçado pelos pés de Paolo Rossi. Cada qual à sua maneira, os torcedores buscavam uma nova esperança. Era preciso reconciliar-se com o jogo.
Eu reencontrei o futebol em um pequeno palco do sul do país. “Estádio Vidal Ramos Júnior, o próprio da municipalidade”, dizia Aldo Pires de Godoy na Rádio Clube. Naquela noite de inverno o Inter de Lages entrou em campo para encarar o Joinville, que reinava absoluto em terras catarinenses. E era certo que aquele Joinville seria outra vez campeão catarinense, não havia força capaz de impedir o quinto título seguido tricolor. O que queríamos é que naquela noite, apenas naquela noite, a história fosse diferente. Que o Joinville levasse suas taças, mas não com uma vitória em nosso quintal. Havia sido assim na Taça Governador do Estado, disputada no primeiro semestre. Joinville campeão, mas sem vencer o Internacional.
Liderado pelo craque Nardela, o adversário buscou o ataque. Mas suas iniciativas paravam em um beque parrudo, peito estufado, altivez cangaceira. A barba espessa sobre a pele castigada, a cara de poucos amigos, nada era acolhedor em Eduardo. Poderia ser um bandido de um faroeste de Sergio Leone. Todavia, para nós lageanos, os colorados eram mocinhos, e bandidos eram os outros. Por isso Eduardo era o nosso xerife. Como morava no bairro do Morro do Posto, assim ficou conhecido: Eduardo, o Xerife do Morro do Posto.
Amigos, o embate foi épico. O Joinville atacava em bloco e Eduardo desbaratava a trama ofensiva sem sutilezas. Carrinhos, voadoras, cabeçadas na bola e nas chuteiras, chutes giratórios, tudo sem mexer um músculo facial. Houvesse uma gravação do que fez Eduardo naquela noite e os atuais lutadores de MMA mudariam de profissão, envergonhados. Talvez se transformassem em jardineiros para cultivar petúnias.
Outros tempos. Defender era um ofício sério, que prescindia de sorrisos ou boas maneiras. Eduardo não era violento, apenas herdara a impávida rudeza do homem lageano. Honrava suas chuteiras pretas e sua insígnia em forma de estrela. Era um cumpridor de seus deveres. Um boi de botas. Um sério.
Eduardo pôs os atacantes tricolores em debandada e o Joinville ficou acuado em sua metade de campo. O Inter estabeleceu o cerco. Apenas Eduardo ficou na intermediária defensiva, onde recolhia as rebatidas desesperadas do adversário para repor o Inter no ataque. Vinha o chutão, Eduardo amaciava a bola no peito estufado e a despachava para o companheiro melhor colocado.
De tanto pressionar, o Inter conseguiu um pênalti. Martinho Bin executou o goleiro Hélio Fernandes com a frieza habitual e anotou o único gol da noite. Os jogadores vieram comemorar junto ao pavilhão social onde eu estava com meu pai, e procurei no emaranhado de braços erguidos o nosso xerife. Não, ele não estava entre os que festejavam o gol. Eduardo já havia retornado ao seu posto, sozinho, e ajeitava a camisa por dentro do calção, esperando o jogo recomeçar.
Eduardo, estampa de bandido, autoridade de xerife
Pelo registro histórico, diga-se que naquele ano o Joinville venceu a Taça Governador e o campeonato estadual, mas não superou o Inter em nenhuma oportunidade. Nos dois jogos no Ernesto Schlemm Sobrinho, empates sem gols. Nos dois jogos no Vidal Ramos Júnior, vitórias coloradas pelo escore mínimo. Ser campeão era uma coisa. Dobrar o Inter de Eduardo em 1982 era algo bem diferente.
Naquela noite, o Inter venceu com o gol de Bin e com a autoridade de Eduardo, nos pés de quem o jogo se encerrou exatamente no nonagésimo minuto. Após dominar a derradeira rebatida do Joinville, o Xerife pisou na bola e ficou estático. Assertivo, olhou para o árbitro José da Silva Melo que, entendendo o gesto, apitou o fim. Melhor para todos. Eduardo não deixaria o Joinville fazer um gol nem que a partida fosse até o amanhecer.
A Rádio Clube já havia escolhido, por unanimidade, o melhor em campo. Eduardo receberia um radinho a pilha, oferecimento da Loja Magnetron. O repórter Evaldir Nascimento alcançou Eduardo quando este já deixava o gramado e o interpelou: “- Eduardo, você acaba de ganhar este rádio National Panasonic, fidelidade em ondas curtas, médias e longas, como o melhor jogador da noite!”
Sem interromper sua caminhada, Eduardo disse rangendo dentes: “- Não quero. Não fiz mais do que a minha obrigação”.
E desceu a escadaria rumo ao vestiário, onde deixaria sua camisa vermelha, sua estrela dourada e suas chuteiras pretas. Dentro de instantes voltaria a ser apenas Eduardo Antunes de Castro, misturado entre outros lageanos no último ônibus circular com destino ao Morro do Posto, sem querer mais que um prato de comida e o reconfortante sono dos justos.
O futebol sente saudade de você, Eduardo.