Arquivo do Autor: Mauricio Neves

Nos Príncipes, um suicídio do Rei

Ficaria mais sonoro se eu soubesse escrever o título em francês, usando os sujeitos prince e Roi, mas talvez já tenha exagerado na licença poética. Me explico: o título se refere ao dia em que, no Parque dos Princípes, em Paris, Pelé tirou a camisa do Santos, vestiu a do adversário e arrematou impiedoso contra a cidadela do time que vestia as mesmas cores.
O jogo foi daqueles amistosos caça-níqueis, em março de 1971. Entre um jogo contra o Palmeiras e outro contra o Bahia, o Santos deu um pulinho em Paris para enfrentar um combinado de Saint-Ettiene e o Olympique de Marseille.
Valia um troféu. Sempre valia um troféu contra aquele Santos. O empate em 0x0 levou a partida para os penais, e o primeiro a cobrar foi Ele, le Roi.
Já vi duas versões na imprensa. A minha preferida diz que ao fim do jogo um jogador do combinado trocou de camisa com Pelé, que vestiu então a vermelha do adversário, e quando foi chamado a bater o pênalti, foi daquele jeito mesmo. Pimba na gorduchinha, xirulirulá, xiruliruliiiquiiiigoolll… du Santus! Opa, ou dos franceses? Vale o jogador ou a camisa? Gol brazuca ou un but française?
A outra versão, e reproduzo nota do jornal Correio Lageano de 2 de abril de 1971, diz que “Pelé numa homenagem aos franceses assinalou o primeiro pênalti vestindo a camisa do time francês”.
Fato é que foi gol, but, goal, bucha. Na contagem, para o Santos, que acabou perdendo. Como diz o belo artigo de Guilherme Nascimento no site Santista Roxo, “em seguida vieram os outros craques santistas, como Lima, Leo Oliveira e Rildo, porém, talvez desconcentrados por terem visto Pelé marcar um gol com a camisa do adversário, erraram suas cobranças e o troféu ficou mesmo em Paris”.
O Santos perdeu a taça. Mas nada importa diante do fato de que um dia, no Parc des Prince, Pelé sangrou a si próprio e se suicidou simbolicamente marcando contra os de roupa igual.
No dia 31 de março de 1971, com o sol caindo no Rio Sena, Pelé vestiu o manto alheio, mas não perdeu a majestade.

31/03/1971 SFC 0x0 Combinado Olympic Marseille/ AS Saint-Etienne (FRA) (1×3 pênaltis)
Local: Parc des Prince – Paris (FRA) Competição: Amistoso Renda: F$ 820.352 = US$ 164.000
SFC: Joel Mendes; Turcão, Djalma Dias, Oberdã e Rildo; Clodoaldo (Leo Oliveira) e Lima; Rogério, Douglas (Ferretti), Pelé e Edu (Abel). Técnico: Antoninho
Pênaltis: Pelé marcou; Lima, Leo Oliveira e Rildo perderam (SFC); Keita, Skoblar e Bosquier marcaram (combinado)

Fontes: http://www.santistaroxo.com.br/artigo/?id=1159 e jornal Correio Lageano de 2 de abril 1971.

A Costa do Marfim e a Gávea em festa

Quando se fala na seleção da Costa do Marfim, as pessoas logo pensam em Drogba, astro do Chelsea, e no time que alguns consideram o melhor selecionado africano, apesar da performance discreta na Copa Africana de Nações. Pensam também na Copa do Mundo, já que os marfinenses estão no grupo do Brasil, cravados entre a estreia que deverá ser tranquila, contra a Coréia do Norte, e o jogão contra Portugal. Sim, a Costa do Marfim está no primeiro mundo do futebol.

Mesmo assim, quando falam em Drogba e seus companheiros, eu lembro de uma outra Costa do Marfim. Uma seleção que engatinhava rumo ao profissionalismo, em uma época em que as atenções na África estava voltadas para a seleção olímpica de Zâmbia, do mítico Kalusha Bwalya, que destruiu a seleção italiana nos Jogos Olímpicos de Seul, e para a estelar seleção de Camarões, do cracaço Roger Millar, do intransponível N’kono, e de Makanaki, M’fede e Omam-Biyik, autor do célebre gol em Pumpido, na abertura do Mundial de 90, no estádio San Siro. Ninguém falava dos marfinenses. Eles ainda eram aprendizes. E, como tal, vieram aprender com os reis do futebol, os brasileiros.

O Flamengo vinha de conquistar a Copa União, e começou o ano de 1988 com um amistoso, na Gávea, para receber as faixas de campeão, enquanto Sport e Guarani protestavam por um quadrangular entre eles, Zico e companhia e o Inter. O adversário foi a Costa do Marfim, que fazia estágio no Brasil e não perdeu a chance de ter uma aula com os mestres rubro-negros.

A velha arquibancada lotou, e logo os torcedores se espalharam ao longo do alambrado e até mesmo à beira do campo. O Flamengo não mandava um jogo do futebol profissional na Gávea desde 10 de novembro de 1982, e o estádio ainda estava recebendo os últimos retoques para ser utilizado no estadual daquele ano. Zico, ainda se recuperando de cirurgia realizada após a finalíssima da Copa União, não jogou. Bebeto apareceu, mas também foi poupado. Ainda assim, liderados por Andrade, ainda longe de ser um técnico vitorioso, os professores deram uma bela aula aos aprendizes marfinenses, vencendo por 3×0, em ritmo de treino, a fim de repassar fundamento por fundamento do jogo de bola ao simpático time africano.

Andrade, o Tromba, que naquela fase ficava meses sem errar um passe, abriu o placar de pênalti. Jorginho fez um golaço de sem-pulo, e o garoto Flávio, com a 10 de Zico, fez o terceiro, chutando de primeira após cruzamento da ponta direita. Após o jogo, ainda no gramado, toda a seleção de Costa do Marfim aplaudiu os mestres brasileiros, gratos pelos valiosos ensinamentos.

Hoje, quando vejo a seleção marfinense na elite do futebol mundial, não posso evitar a lembrança da tarde de 24 de janeiro de 1988, e penso: Tiveram bons professores.

A Costa do Marfim e a Gávea em festa

Quando se fala na seleção da Costa do Marfim, as pessoas logo pensam em Drogba, astro do Chelsea, e no time que alguns consideram o melhor selecionado africano, apesar da estreia apagada na Copa Africana de Nações. Pensam também na Copa do Mundo, já que os marfinenses estão no grupo do Brasil, cravados entre a estreia que deverá ser tranquila, contra a Coréia do Norte, e o jogão contra Portugal. Sim, a Costa do Marfim está no primeiro mundo do futebol.

Mesmo assim, quando falam em Drogba e seus companheiros, eu lembro de uma outra Costa do Marfim. Uma seleção que engatinhava rumo ao profissionalismo, em uma época em que as atenções na África estava voltadas para a seleção olímpica de Zâmbia, do mítico Kalusha Bwalya, que destruiu a seleção italiana nos Jogos Olímpicos de Seul, e para a estelar seleção de Camarões, do cracaço Roger Millar, do intransponível N’kono, e de Makanaki, M’fede e Omam-Biyik, autor do célebre gol em Pumpido, na abertura do Mundial de 90, no estádio San Siro. Ninguém falava dos marfinenses. Eles ainda eram aprendizes. E, como tal, vieram aprender com os reis do futebol.

O Flamengo vinha de conquistar seu quarto título nacional, e começou o ano de 1988 com um amistoso, na Gávea, para receber as faixas de campeão da revolucionária Copa União. O adversário foi a Costa do Marfim, que fazia estágio no Brasil e não perdeu a chance de ter uma aula com os mestres rubro-negros.

A velha arquibancada lotou, e logo os torcedores se espalharam ao longo do alambrado e até mesmo à beira do campo. O Flamengo não mandava um jogo do futebol profissional na Gávea desde 10 de novembro de 1982, e o estádio ainda estava recebendo os últimos retoques para ser utilizado no estadual daquele ano. Zico, ainda se recuperando de cirurgia realizada após a finalíssima da Copa União, não jogou. Bebeto apareceu, vestiu a camisa de jogo para sair na foto, mas também foi poupado. Ainda assim, os rubro-negros deram uma bela aula aos aprendizes marfinenses, vencendo por 3×0, em ritmo de treino, a fim de repassar fundamento por fundamento do jogo de bola ao simpático time africano.

Andrade, o Tromba, que naquela fase ficava meses sem errar um passe, abriu o placar de pênalti. Jorginho fez um golaço de sem-pulo, e o garoto Flávio, com a 10 de Zico, fez o terceiro, chutando de primeira após cruzamento da ponta direita. Após o jogo, ainda no gramado, toda a seleção de Costa do Marfim aplaudiu os mestres brasileiros, gratos pelos valiosos ensinamentos.

Hoje, quando vejo a seleção marfinense na elite do futebol mundial, não posso evitar a lembrança da tarde de 24 de janeiro de 1988, e penso: – Tiveram bons professores.

1982 e a seleção de Telê: o time que merecia mais do que o mundo

Júnior dominou a bola na intermediária, pelo lado esquerdo. Percebeu a movimentação de Zico e tocou-lhe rasteiro, correndo para o espaço vazio, como fazia no Flamengo. Zico dominou e parou o tempo, o suficiente para atrair Daniel Passarela. Conhecia o ritmo exato de Júnior e seu passe colheu o lateral atrás de Galvan e Olguin, de frente para o gol. Júnior chutou colocado, entre as pernas do grande Ubaldo Fillol. A Argentina campeã mundial estava incontestavelmente batida no estádio de Sarriá, em Barcelona.

O jogo variado e agressivo do time de Telê Santana era cantado pela imprensa mundial como um futebol de outra galáxia. Desde a virada na estréia contra a União Soviética, com dois chutes sobrenaturais de Sócrates e Éder, passamos a acreditar que a seleção tinha três ou quatro soluções para cada problema de campo que lhe fosse proposto. A falha de Valdir Perez no chute de Bal abriu uma inesperada vantagem soviética e pôs o time a bombardear um Rinat Dasaev que parecia intransponível. A quinze minutos do fim Sócrates abriu o meio da defesa a dribles diagonais e acertou o ângulo direito numa combinação de precisão e potência, um a um. Mas a disciplina do adversário não caiu com o gol de empate. Caiu aos quarenta e três minutos. Falcão recebeu de Paulo Isidoro na meia-direita e iludiu a marcação abrindo as pernas, deixando a jogada seguir até Éder Aleixo. Vindo de trás, o ponta ergueu a bola com um toque e no exato instante em que ela caía entre dois defensores, voou para pegá-la no ar. A bomba explodiu à esquerda do estático Dasaev, enfim indefeso.

Com cores de drama e final épico, a virada deu a nós, torcedores, a sensação de invencibilidade. A entrada de Cerezo a partir do segundo jogo derrubou as últimas resistências dos que pediam um time com pontas. Era no vazio da ponta-direita que surgiam Sócrates ou Falcão, ou ainda Leandro resguardado por Cerezo, às vezes dois deles ao mesmo tempo para jogar com Zico. Tudo aconteceria por ali ou pelos pés de Éder e Júnior, que ficavam livres do outro lado quando o adversário resolvia povoar de defensores o seu flanco esquerdo. Talvez tenha sido a exatidão dessa variação de jogadas, ou o talento incalculável de um time que tinha Falcão, Sócrates, Éder e Zico no auge de suas formas, mas o pecado cresceu e se consolidou através da excelência do escrete: a seleção brasileira de 1982, assim como a sua torcida, passou a se sentir invencível.

Não havia soberba. Os pecados eram, todos e em sua plenitude, escusáveis. Surgiram na formação do time, e não se corrige um defeito de formação sem se alterar uma virtude. Quando um time se dá por pronto é porque tem uma essência indivisível. A seleção de 1982 não se achava perfeita, mas sabia-se pronta e invencível. Seria campeã do mundo ou se tornaria uma lição, mais funda que a de 1950, mais dolorida que a de 1978, porque incompreensível.

Assim foi que o gol de Júnior contra os argentinos teve um significado imediato maior que a vitória selada. Batidos os campeões mundiais restava um jogo protocolar contra a Itália de três empates pequenos contra Polônia, Peru e Camarões, e com ela bastava empatar. Sairíamos do pequeno Sarriá para o monumental Camp Nou, para uma semifinal contra a previsível União Soviética ou contra a Polônia do cansado Lato e do instável Boniek. Daí para Madrid e a grande celebração do futebol bem jogado contra a França de Tresor, Tiganá e Michel Platini.

Já revi a partida contra a Itália mais de vinte vezes. A perfeição dos gols de Sócrates e Falcão é quase proibitiva para um jogo tão humano e inexato. E por mais que reveja, eu não entendo o que aconteceu em campo. Nos meus sonhos, a foto de Paulo Roberto Falcão – uma das últimas do grande J.B. Scalco – vem com a legenda o gol que abriu o caminho para o tetra.

O sonho é sonho, o pesadelo é real. Paolo Rossi correndo de braços abertos, as veias saltadas e o número vinte branco vazado do fundo azul é um fantasma de pesadelo. Mas se não consigo entender aquela partida, foi no dia 5 de julho de 1982 que entendi outras coisas. Entendi que jamais seria plenamente feliz, que nunca mais me sentiria invencível e que estava eternamente preso ao jogo incompreensível que chamamos de futebol.