Associação Athletica São Geraldo – São Paulo (SP): 1º Clube paulista fundado por negros

A Associação Athletica São Geraldo foi uma agremiação da Cidade de São Paulo (SP).O “clube dos homens de cor” foi Fundado no dia 1º de novembro de 1917, por um grupo de “homens de cor”: Silvério Pereira, Rufi no dos Santos, Felisbino Barbosa, Horácio da Cunha, Benedito Costa e Benedito Prestes. A finalidade era promover a prática tanto do futebol quanto do atletismo .

O Alvinegro teve sedes na Barra Funda e posteriormente nos Perdizes. Não obstante, ao longo do tempo, seus investimentos maiores concentraram-se no esporte bretão. Como já assinalamos, o time do São Geraldo era composto por atletas negros.

Sua criação foi uma resposta à “linha de cor” que vicejava dentro e fora dos gramados na época. As grandes agremiações do futebol paulista – como o Club Athlético Paulistano, a Associação Athlética das Palmeiras e o Sport Club Corinthians Paulista (instituído em 1910) – dificultavam ou restringiam a presença de atletas “pretos” e “mulatos” (Leite, 1992, p. 26).

Alguns dirigentes acreditavam na inferioridade congênita do “jogador de cor, inadaptável à técnica e à ciência do futebol clássico” (Mazzoni, 1968, p. 159). Mesmo quando incorporado à equipe de futebol, os grandes clubes lhe vetavam a participação nas suas atividades sociais – como festas e bailes.

A criação do São Geraldo não se revestiu tão somente de um caráter reativo. Sua articulação igualmente se inseriu na rede de associativismo negro que, a partir do início do século XX, floresceu na terra dos bandeirantes. Eram dezenas de associações voltadas para fomentar as atividades recreativas, culturais, políticas e sociais dos autodenominados “homens de cor”.

Os tipos de eventos por elas promovidos, bem como as atividades a que se dedicavam, mostram que as suas finalidades eram bastante diferentes. Tais finalidades apareciam no próprio nome das associações ou nos vocábulos que os adjetivavam (“dançantes”; “recreativas, dançantes”; “dramático recreativas”; “dramático recreativa e literária”; “dramático recreativa literária e beneficente”; “beneficente e humanitária, recreativas e esportivas”, ou exclusivamente “esportivas”).

Apesar das diferenças existentes entre elas, as associações confluíam para o desenvolvimento de uma identidade específica – de um nós, negros, em oposição a eles, os brancos –, sendo, portanto, fundamental para a formação e desenvolvimento da experiência racial do grupo (Pinto, 2013, p. 80-81; Butler, 1998; Andrews, 1998; Trindade, 2004; Seigel, 2009).

O São Geraldo surgiu na Barra Funda, bairro que aglutinava um importante segmento da “população de cor”, oriunda sobretudo de pequenas cidades do interior do estado. A migração dessa população para a metrópole paulistana relacionava-se com a procura de emprego e melhores condições de vida no pós-abolição.

Na Barra Funda, foram construídos, além da estação ferroviária, grandes armazéns para estocar especialmente o café. Os homens negros constituíam a mão de obra básica, realizando as tarefas mais penosas de carregamento e descarregamento de mercadorias, seja nesses armazéns, seja naqueles situados no porto de Santos, para onde se deslocavam sempre que escasseava o trabalho em São Paulo. Já as mulheres prestavam serviços como domésticas nas casas das famílias ricas da cidade.

No tempo livre, estratos da “população de cor” realizavam batuques em torno dos botequins da Alameda Glette, rodas de samba, jogos de pernada, umbigada e tiririca (espécie de capoeira) no Largo da Banana e comemoravam os dias de Momo por meio dos Grupo Barra Funda, Campos Elísios e Flor da Mocidade – os primeiros cordões carnavalescos de São Paulo.

Assim, não é de estranhar que a Barra Funda já tenha sido identificada como um dos “territórios negros” da cidade nas primeiras décadas do século XX (Rolnik, 1989). Na parte alta do bairro, próximo ao Bom Retiro, havia vários terrenos baldios os quais, à medida que se desencadeou a popularização do futebol, passaram a ser utilizados para a prática do esporte.

Num desses terrenos, no fim da Rua Tupi, localizava-se o primeiro campo do São Geraldo (A Voz da Raça, 25/03/1933, p. 2). De acordo com Iêda Marques Brito, o clube foi erigido pelos “negros da Glette”, um grupo de negros que se encontravam na Alameda Glette, próximo à linha férrea. Não contavam com habilidades artesanais que pudessem favorecê-los profissionalmente, nem dominavam um ofício, razão pela qual trabalhavam como carregadores e ensacadores. Por vezes viviam à margem da ordem social vigente.

Eram respeitados pela sua força física, daí terem recebido a alcunha de “valentes da Barra Funda” (Britto, 1986, p. 100-101). Todavia, as informações fragmentadas disponíveis não permitem tecer detalhes acerca da origem do São Geraldo.

O certo é que a agremiação lavrou seus estatutos em cartório e estabeleceu uma estrutura de funcionamento alicerçada em várias instâncias, tais como diretoria, corpo de associados e programa de atividades. Sua sede foi instalada na Rua Barra Funda, mais tarde transferida para a Rua Florêncio de Abreu.

Aos poucos seu time de futebol, cujo uniforme ostentava as cores preto e branco, foi se estruturando até se filiar à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) – a entidade esportiva encarregada de organizar o futebol no Estado – e disputar o campeonato da chamada Divisão Municipal, a qual reunia uma série de clubes de várzea.

O São Geraldo ganhou destaque no meio negro, sobretudo pela qualidade de seus jogadores. Zelão, Tita, Africano, Filipão, Olavo, Caçaróia, Pé, Buiú, Alfredo, Goiabada, Bizerrão, Caetano, Vaca Braba, Bode, Hilário foram alguns dos jogadores que vestiram a camisa do clube e protagonizaram, na “zona Pacaembu, jogos de escol” (A Voz da Raça, 25/03/1933, p. 2).

Também tiveram passagem pelo “alvinegro” da Barra Funda o “valoroso” defensor Carlos Campos (O Clarim, 17/07/1927, p. 1; Cultura: Revista da Mocidade Negra, abr.-maio 1934), o “famoso beque” Sarará (Britto, 1986, p. 100), o atacante Ditinho – considerado um dos craques do time – e o “meia esquerda” Paulo, que “tem feito, nos nossos meios esportivos, uma fi gura brilhante” (Progresso, 26/09/1929, p. 7).

Praticar o futebol naquela época era algo dispendioso. Parte do material (bola, meias, calções, luvas, joelheiras, tornozeleiras) era importada (Caldas, 1990, p. 122-123). Não se sabe exatamente os meios com os quais o São Geraldo arcava com as despesas da equipe. É bem plausível que a sua principal fonte de recursos derivava das mensalidades dos sócios.

Outras fontes de renda provinham de donativos e da arrecadação das festas e bailes. “Revestiu-se de grande brilhantismo o festival dançante que A.A. São Geraldo fez realizar no sábado p.p. no salão Modelo à Rua da Consolação, 27, dedicado aos seus associados e suas famílias”, noticiou a revista Cultura (Progresso, 22/07/1928, p. 3; Cultura: Revista da Mocidade Negra, jan. 1934). Anos mais tarde, Dionísio Barbosa – o fundador e principal dirigente do cordão carnavalesco Camisa Verde – informou que cedia o salão da agremiação ao São Geraldo, para que este realizasse bailes “pra arrumá dinheiro, pra comprá camisa”, e os jogadores do São Geraldo, por sua vez, retribuíam fazendo a proteção dos bailes do Camisa Verde.

 

Campeão da Copa do Centenário da Independência do Brasil de 1922

Em nenhuma delas adquiriu a projeção do São Geraldo. Não é para menos. Ao longo de sua trajetória, o “alvinegro” da Barra Funda colecionou resultados positivos dentro dos gramados, sendo o principal deles a conquista da Copa do Centenário da Independência do Brasil – nome dado ao campeonato paulista de 1922 –, evento que fez parte das comemorações alusivas aos cem anos da emancipação política da nação.

Tratou-se de uma competição bastante disputada, que despertou a atenção do crescente número de fãs do futebol. Ao final do certame, o São Geraldo consagrou-se campeão da Divisão Municipal. Anos mais tarde, Deocleciano Nascimento relatou – detalhadamente e com emoção – como transcorreu a partida daquela grand finale.

O São Geraldo, clube constituído “somente de elementos de cor”, enfrentou o Flor do Belém, time “formado por brancos” e considerado favorito ao ambicionado título. A decisão do campeonato do Centenário se deu no Estádio da Floresta, num domingo de Páscoa. Deocleciano era um “dos membros da diretoria” do clube da Barra Funda.

 

Narrativa do jogo decisivo de 1922

Conta que, pela manhã, fez “alguns dos elementos sangeraldenses” verem a “grande responsabilidade que iam assumir dali a algumas horas. Em cada rosto, em cada fisionomia, notava-se um ar de esperança”, pois o desânimo não se abateu sobre os componentes do “quadro dos jovens pretos”. No primeiro tempo da partida, estes “produziram pouco, ou quase nada”.

O adversário então marcou um gol e, instantes depois de abrir o placar, fez o segundo gol de vantagem, de modo que seus “torcedores já o aclamavam campeão”. Mas, como diz o provérbio, “é melhor quem ri por último”. No segundo tempo, operou-se uma reviravolta surpreendente. “Diante da formidável pressão dos negros”, o Flor do Belém cedeu “os pontos conquistados e mais um”, sendo derrotado pelo placar de três tentos a dois. “Oh!… Meu Deus! Que alegria descrevo estas linhas!…”, exclamava Deocleciano em tom saudosista no ano de 1934:

Sinto, em mim, tamanha comoção… parece-me que estou ouvindo os gritos de entra!… centra!… não durma!… é sua!… E depois aquela vozeria que se elevára, demoradamente nos ares: gôôôôl! Gôôôôl! E em triunfo, ‘os onze’, saírem carregados do campo, levando para o São Geraldo o cetro de Campeão Municipal do Centenário (A Voz da Raça, 28/04/1934, p. 4).

Com a conquista do título, o “alvinegro” da Barra Funda tornou-se mais conhecido em São Paulo, especialmente no meio negro, legitimando-se como o principal time de futebol do gênero. De acordo com o Progresso, não foi a partir daquele instante que o São Geraldo compreendeu seu papel no mundo esportivo. De longa data os jogadores vinham “apurando a sua performance”. E “merecidamente levantaram o título de campeão do Centenário”, feito que souberam guardar com “usura”.

Afinal, colocou a agremiação na “dianteira de suas congêneres”. Instrumentalizando um discurso racial, o jornal da imprensa negra frisava que a “Associação Atlética São Geraldo é uma das agremiações de homens pretos que, no esporte, tem sabido não só na capital, como em todo o Estado, honrar sobremaneira o nome do negro brasileiro” (Progresso, 26/09/1929, p. 7).

Por essa perspectiva, o “alvinegro” da Barra Funda representava, antes, um símbolo da raça. Sua conquista da “taça” do Centenário foi, realmente, vista pelos afro-paulistas como uma grande proeza, que os enchia de orgulho racial, daí ter sido lembrada e relembrada diversas vezes pelos seus órgãos de comunicação.

Em junho de 1928, o Progresso noticiava que o “conhecido campeão do Centenário” destacava-se na “vanguarda dos clubes de sua categoria. Em cada luta em que se empenha aquela associação, numerosa é a assistência, que vai levar-lhe o apoio de sua torcida” (Progresso, 23/06/1928, p. 5). Cerca de um ano depois, o periódico voltava a se reportar aos seus leitores: “Na história das festas, com que se comemorou, esportivamente, os 100 anos de nossa emancipação política, o clube que bem representa os pretos da capital e do Estado de S. Paulo, ocupa capítulo à parte. De um modo que nos honra sobremaneira, o S. Geraldo conquistou o disputado título de Campeão do Centenário. Deus, parece, que escolheu a camisa alvinegra, para dar-lhes essa honrosa designação, evidenciando, deste modo, o quanto a nós, pretos, o Brasil deve a sua Independência” (Progresso, 28/07/1929, p. 5).

Para muitos afro-paulistas, o triunfo do São Geraldo em 1922 assumia um significado que ia além do desportivo. Servia para conferir centralidade e visibilidade ao negro, positivando a sua imagem pública e lhe possibilitando atestar o seu valor não somente para a afirmação do futebol, mas também do Brasil. Denotando um sentido cívico-político, o esporte bretão era, neste caso, apropriado para celebrar a “raça” e a “nação”, combinadamente.

Além de disputar o campeonato da APEA, o São Geraldo costumava jogar contra os clubes dos “homens de cor”. Os contatos entre os sujeitos do chamado meio negro eram proativos e constantes. Bastava a existência no bairro de um time de futebol para que a interação entre eles se desenvolvesse, em diversas latitudes.

Um dos grandes rivais do São Geraldo localizava-se justamente no mesmo bairro. Era o time de futebol do Grêmio Barra Funda, com o qual disputou partidas memoráveis (Silva, 1998). Em abril de 1926, o Grêmio Recreativo Nem que Chova abriu as inscrições de um “festival esportivo”, planejando reunir dez times de futebol do meio negro no campo do Paulista de Aniagens, situado na Rua Glicério. Como premiação, previa-se distribuir “duas ricas taças” (O Clarim, 25/04/1926, p. 4).

O “festival” ocorreu no dia 9 de maio daquele ano e, ao que parece, contou com a participação do São Geraldo (O Clarim, 20/06/1926, p. 3). Já no ano de 1932, a “pujante esquadra do São Geraldo suspendeu a linda Taça Clarim d’Alvorada, troféu máximo de campeão […] entre as agremiações esportivas da raça negra, que militam na capital” (O Clarim d’Alvorada, 31/01/1932, p. 3). Os intercâmbios do “alvinegro” da Barra Funda também ocorreram com os clubes do interior paulista. Em agosto de 1929, sua equipe viajou até a cidade de Campinas, para enfrentar a Ponte Preta.

O prélio, ainda que amistoso, se viu cercado de expectativas. “Perante grande assistência”, noticiou o Progresso, “foi disputada no dia 11 do corrente, em Campinas, uma partida amistosa de futebol entre as turmas da A. A. São Geraldo e a respectiva da A.A. Ponte Preta”.

A partida teria transcorrido muito movimentada e terminou com a vitória da Ponte Preta, pela contagem de 4 x 2, “sendo que o São Geraldo teve um ponto legítimo anulado, e uma pena máxima, que foi chutada fora. O S. Geraldo foi bastante prejudicado pelo juiz” (Progresso, 31/08/1929, p. 5).

Por vezes, o “alvinegro” da Barra Funda enfrentou adversários de outros estados, principalmente do Rio de Janeiro, em torneios e jogos amistosos (Silva, 1998).  Em 1925, ocorreu uma crise na organização do futebol paulista, o que levou o Clube Atlético Paulistano a abandonar a APEA e decidir criar a Liga de Amadores de Futebol (LAF). Seu gesto foi acompanhado imediatamente pela Associação Atlética das Palmeiras e pelo Sport Club Germânia. A nova associação nasceu com o propósito de “depurar” o futebol e incrementar a prática do esporte sobre as bases do “mais restrito amadorismo” (Rosenfeld, 1993).

Tanto a APEA quanto a LAF reivindicavam para si o direito de representar ofi cialmente o futebol do Estado de São Paulo. Neste cenário, o São Geraldo aderiu à nova associação, disputando o campeonato da divisão “intermediária”. Convém lembrar que, nessa época, não havia lei de acesso. Os nove times considerados grandes (Club Atlético Paulistano, Sport Club Germânia, Sport Club Corinthians, Associação Atlética das Palmeiras, Britânia Atlético Clube, Clube Atlético Santista, Antártica Futebol Clube, Clube Atlético Independência e Paulista Futebol Clube), que compunham a divisão mais importante da LAF, jogavam entre si e não corriam o risco de rebaixamento.

Já o São Geraldo jogava contra os clubes menores, muitos dos quais egressos do futebol de várzea. E mesmo que aí se destacasse, não havia a perspectiva de ascender à divisão principal (Silva, 2013). “Grandes são as vitórias do São Geraldo, que cioso pelo seu passado”, ressaltou o Progresso, “tem se empenhado em pugnas sérias, valendo-lhe lugar invejável na LAF. Na última luta em que se empenhou com o São Paulo Railway, levou de vencida o seu valente antagonista” (Progresso, 07/09/1928, p. 5).

A imprensa negra costumava acompanhar o desempenho do São Geraldo no campeonato da LAF e não perdia a oportunidade de repercutir e vibrar com os triunfos do “campeão do Centenário” (Progresso, 15/11/1928, p. 2). Quando, em 1928, este disputou o último jogo da divisão “intermediária” da LAF, no qual enfrentou os quadros principais do União Fluminense F.C., a imprensa negra voltou a pautá-lo.

O jogo era esperado com “grande interesse, pois sérios rivais e bem colocados na tabela do campeonato iam pela segunda vez no ano medir forças”. Ao Fluminense bastava um empate e ao São Geraldo uma vitória para ficar empatado com o rival na primeira colocação. Muitos “torcedores da forte falange negra estiveram presentes” no evento, no entanto, os “azares da sorte” impediram que eles saíssem de lá “jubilosos”, afinal, o “alvinegro” da Barra Funda se viu derrotado.

“Foi uma pena”, assinalou o Progresso, mas nada de arrefecer os ânimos. “O campeão do Centenário é digno, ainda, pelos esforços de seus componentes daquele título. […] O São Geraldo, estamos convictos, não se desanimará por isso. Apurará ainda mais o seu conjunto, e depois… mãos à obra, isto é, firme na liça, em guarda no campo. Confiante no destino” (Progresso, 13/01/1929, p. 6).

Se no campeonato de 1928 o “alvinegro” da Barra Funda se viu descambado pelos “azares da sorte”, no do ano seguinte a situação se alterou. Segundo O Clarim d’Alvorada, o São Geraldo fechou a competição de 1929 de “um modo brilhante e digno de todos os encômios”. Basta dizer que, no decorrer do ano, seu “quadro” não sentiu o gosto da derrota; os “jogadores não sofreram a menor pena ou censura, em se tratando de disciplina.

E isto, para nós, é motivo de júbilo, pois o S. Geraldo é uma associação essencialmente de nossa classe”, afirmou o jornal da imprensa negra. O rendimento da equipe em campo teria surpreendido a todos. Durante todos os jogos, “apenas uma meta vazou o gol São Geraldense”; no mais, “tudo foi levado de vencida, portanto, esse campeonato foi um ano de orgulho para os esportistas negros desta capital, e a diretoria que conduziu o invicto S. Geraldo, no ano findo, está de parabéns, pela conquista deste alto troféu que irá enriquecer a sede deste nosso acatado grêmio esportivo”, finalizou a reportagem d’O Clarim d’Alvorada (O Clarim d’Alvorada, 25/01/1930, p. 2).

Aquela foi a última vez que o “alvinegro” da Barra Funda disputou o campeonato da LAF, a entidade que, desde a sua criação, mostrava-se favorável à permanência do amadorismo. Tudo levava a crer que a LAF iria substituir a APEA como legítima representante do futebol de São Paulo, mas não foi isso que ocorreu. A despeito de seu dinamismo na fase inicial, a entidade dissidente não conseguiu se consolidar no meio futebolístico.

Lentamente, os times foram abandonando-a e regressando à APEA. Foi o caso do Sport Club Corinthians, que ajudou a erguê-la em 1925, e retornou à APEA em 1927, tendo nela participado de apenas um campeonato. Ao todo, a LAF organizou três campeonatos paulistas, extinguindo-se em 1929.

O insucesso da entidade deveu-se basicamente à sua insistência em manter o futebol amador – condição na qual os jogadores ficavam desprovidos de salário, vínculo formal e não conseguiam viver exclusivamente do futebol, tendo que exercer outras ocupações para garantir o seu sustento –, numa época em que os clubes cada vez mais se profissionalizavam.

Enquanto isso, a APEA, que na teoria preconizava o amadorismo, na prática deixava que clubes e jogadores experimentassem o profissionalismo. Waldenyr Caldas argumenta que poucos jogadores queriam continuar nos times da LAF, uma vez que só ganhavam o material de jogo (calção, camisa, meias, toucas e chuteira) para entrar em campo, ao passo que, nos times da APEA, eles poderiam receber um salário paralelo à sua eventual atividade profissional fora do futebol.

Não tardou para que os melhores jogadores da entidade dissidente começassem a se transferir para as equipes da APEA. Os que lá permaneceram, com raras exceções, “não desejavam mesmo se profissionalizar como futebolistas. Desse modo, a LAF não poderia mesmo ter vida longa”. Em São Paulo, mais do que em qualquer outro lugar do país, o profissionalismo no futebol “avançava de forma irreversível” (Caldas, 1990, p. 129).

Foi neste contexto que o São Geraldo elegeu uma nova diretoria e voltou a se afiliar à APEA, participando de suas competições. Em 1933, a revista Evolução – cujo subtítulo era bem sugestivo: “revista dos homens pretos de São Paulo” – reportava-se ao passado da “dedicada e sempre estimada associação” da Barra Funda, um passado que consistia numa “página cheia de glórias para o engrandecimento do progresso da nossa raça no esporte predileto do momento, o futebol.

Desta Associação têm saído grandes astros”. Se o concurso de todos os elementos negros fosse uma realidade, “ela seria na atualidade uma grande demonstração de força da nossa raça. Porém, os seus dirigentes não se cansam de lutar. Esta sociedade nossa está filiada à APEA, fazendo parte da sua 2ª. divisão” (Evolução: Revista dos Homens Pretos de São Paulo, 13/05/1933, p. 14).

Como se percebe, o São Geraldo continuava sendo celebrado pelos porta-vozes da “comunidade negra”. Mais do que um mero time de futebol, ele era visto como uma referência cívica, um patrimônio-símbolo do aperfeiçoamento da raça.

Para além de um passado cheio de “glórias”, seus êxitos remeteriam às potencialidades, ao poder de realização e à capacidade de superação do negro na sociedade brasileira. Mas, naquela altura, o clube da Barra Funda já não era o mesmo.

Pouco a pouco entrou em crise, enfrentou tensões internas e se desarticulou coletivamente. Sem resultados expressivos dentro de campo, restava viver de um discurso saudosista. Não é possível assegurar, ainda, quando o time encerrou as suas atividades, mas parece que foi na primeira metade da década de 1940.

Também não é possível asseverar as razões internas que levaram a isso. Quanto às externas, tudo indica que o desmonte do São Geraldo esteve relacionado ao novo contexto social e cultural. Com a consolidação do futebol como esporte de massa e sua definitiva profissionalização, o que implicou um aumento na competitividade entre os grandes clubes, perderam terreno as linhas de cor e de classe social que imperavam no meio (Levine, 1980; Evolução: Revista dos Homens Pretos de São Paulo, 13/05/1933, p. 8).

Contribuiu para esse processo o crescente descrédito nas ideias do racismo científico e a ressignificação, para não dizer positivação, do papel da mestiçagem no imaginário nacional (Borges, 1993; Schwarcz, 1993; Ventura, 2000). Talvez mais importante que a condição de “preto”, “mulato” ou pobre de cada jogador seria a vitória do time.

Conforme revelou A Voz da Raça em julho de 1933, “os principais clubes de futebol aos poucos iam reformando seus estatutos e entre cláusulas abolidas figurava sempre a que proibia a entrada de homens de cor”. Para o veículo de comunicação “oficial da Frente Negra Brasileira”, o jogador símbolo do “ingresso do negro nos altos cenários” do futebol foi Mateus Marcondes.

O “másculo” atleta do Clube Espéria teria sido a última “figura a aparecer vitoriosamente em nossos esportes, vencendo e convencendo aos paredros do futebol bandeirante […]” (A Voz da Raça, 08/07/1933, p. 4).

Muitos clubes da primeira divisão do futebol paulista passaram a “recrutar” jogadores negros na década de 1930. Isto não significa que tenham cessado as denúncias de que tais jogadores, embora elevassem o nome das agremiações desportivas, eram aceitos apenas como atletas e não como sócios (O Clarim d’Alvorada, 26/07/1931, p. 3).

Seja como for, emergiu um fenômeno novo: alguns dos melhores jogadores colored migraram para os grandes clubes (Andrews, 1998, p. 222). Bianco, o famoso “gorrinho encarnado” do Sul-América, transferiu-se para a Associação Atlética das Palmeiras (A Voz da Raça, 08/07/1933, p. 4). Talvez o caso mais emblemático tenha sido Petronilho de Brito, um típico jogador da várzea paulistana que, na concepção de Thomaz Mazzoni, trouxe pioneiramente para o “futebol dos grandes clubes o verdadeiro futebol da raça negra” (Mazzoni, 1968, p. 159).

Do próprio São Geraldo saíram “grandes astros” (Evolução: Revista dos Homens Pretos de São Paulo, 13/05/1933, p. 14), alguns dos quais teriam ido parar no Sport Club Corinthians, pelo menos é o que Seu Zezindo da Casa Verde, um ex-jogador da equipe, afirma: Na Barra Funda jogava aqui no São Geraldo.

Negro não passava [para a primeira divisão do campeonato]. Então nóis desafiêmo tudo quanto era time de São Paulo. Tudo, Paulistano, nós desafiava todo mundo. Ninguém queria jogá com nóis. Sabe quem foi que um dia descobriu o São Geraldo? O Corínthians, começou a passá a mão nos negro devagarinho, tirô um, tirô outro, tirou um, tirou outro e destruiu o São Geraldo. Mas o São Geraldo era prá sê um time de primeira categoria. No, no campeonato era…

Os colored que permaneceram em seus times de origem, com raras exceções, não tinham a intenção de se profissionalizar como jogador de futebol. Assim, os times dos “homens de cor” se viram sem seus “craques”, passaram a enfrentar dificuldades para se manter e, de certo modo, perderam parte da coesão e do sentido de sua existência.

Prosseguiram atuando no futebol amador de várzea, sem, contudo, perspectivas de vida longa. No que concerne ao São Geraldo, continuou a ser evocado no meio negro como o campeão do Centenário. Dada a importância do acontecimento, devia ser celebrado, rememorado e transmitido de geração para geração, para não cair no esquecimento.

Em 1948, ao recordar os “maiores feitos do futebol brasileiro”, a folha Mundo Esportivo mencionou o título do São Geraldo de campeão do Centenário da “Divisão Municipal” (Mundo Esportivo, 16/01/1948, p. 14). A esse respeito, O Clarim d’Alvorada já tinha sido bem incisivo em sua edição de 26 de julho de 1931: “o São Geraldo é um clube que honra a coletividade negra no futebol paulista” (O Clarim d’Alvorada, 26/07/1931, p. 3).

Eis uma opinião compartilhada por Dionísio Barbosa, que, em depoimento prestado ao Museu da Imagem e do Som em 1976, referiu-se às supostas virtudes do “alvinegro” da Barra Funda.

Para muitas “pessoas de cor”, o São Geraldo era uma fonte de orgulho racial. Na prática desportiva, constituía uma espécie de sismógrafo do quanto o negro era perseverante, dotado de disciplina e qualidades físicas, aliadas à inteligência e competência para alcançar os pináculos da vitória e se impor perante os desafios da vida (e da nação), colocando em xeque a ideologia de sua inferioridade racial.

 

PS: O título do Torneio Eliminatório Paulista de 1923, está disponível em nosso Blog no seguinte Link: https://historiadofutebol.com/blog/?p=46969

 

FONTES: Progresso (23/06/1928, p. 5) – A Voz da Raça (25/03/1933, p. 2) – Correio de São Paulo (30/04/1941, p. 9; 08/06/1941, p. 18; 03/07/1941, p. 11; 17/07/1941, p. 10; 24/07/1941, p. 11; 10/08/1941, p. 20; 20/08/1941, p. 9). – Folha Mundo Esportivo – Livro “Os Esquecidos – Arquivos do Futebol Paulista, da Editora Datatoro, de autoria de Rodolfo Kussarev – O “campeão do Centenário”: raça e nação no futebol paulista, de Petrônio Domingues

Este post foi publicado em 01. Sérgio Mello, 03. Toninho Sereno, 16. Rodolfo Stella, Carências, Curiosidades, Escudos, História do Futebol, São Paulo em por .

Sobre Sérgio Mello

Sou jornalista, desde 2000, formado pela FACHA. Trabalhei na Rádio Record; Jornal O Fluminense (Niterói-RJ) e Jornal dos Sports (JS), no Rio de Janeiro-RJ. No JS cobri o esporte amador, passando pelo futebol de base, Campeonatos da Terceira e Segunda Divisões, chegando a ser o setorista do América, dos quatro grandes do Rio, Seleção Brasileira. Cobri os Jogos Pan-Americanos do Rio 2007, Eliminatórias, entre outros. Também fui colunista no JS, tinha um Blog no JS. Sou Benemérito do Bonsucesso Futebol Clube. Também sou vetorizador, pesquisador e historiador do futebol brasileiro! E-mail para contato: sergiomellojornalismo@msn.com Facebook: https://www.facebook.com/SergioMello.RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *