Mangas compridas deram sorte

Aquele sábado, 15 de dezembro de 1962, amanheceu nublado e abafado. Às vésperas do verão, naquela época como hoje, fazia calor no Rio. O folclórico roupeiro Aloísio Birruma, contemporâneo de Carlito Rocha no lendário Campeonato Carioca de 1948, acordou cedo, colocou as superstições na balança e decidiu: o Botafogo iria disputar a final com o Mais Querido, usando as habituais camisas de mangas compridas. Se a mandinga dera certo desde o início do campeonato, não seria no último ato que ele iria mudar o esquema. Até porque o treinador, Marinho Rodrigues, não se metia em sua seara. E como fiel seguidor de Carlito, Aloísio sabia que não se deve provocar os deuses do futebol, supostamente chefiados por Jesus Cristo, devoção do dirigente.

Antigo jogador alvinegro, Marinho, inclusive, havia participado de dois jogos em 1948 – da infeliz estréia contra o São Cristóvão (quando o Botafogo sofreu sua única derrota) e da vitória sobre o América, ainda no primeiro turno. De certa forma, desde o início, ficara implicitamente combinado: Marinho mandava no time e Aloísio, nas camisas. E não havia bicampeão do mundo que desafiasse as determinações do roupeiro: Nilton Santos, Garrincha, Amarildo e Zagallo podiam até não gostar daquelas mangas compridas, mas ficavam quietos em seus cantos. Quem poderia reclamar de calor era Didi. Mas Didi já não estava no Botafogo. Disputara cinco partidas com o time, no turno, e, tal qual um caixeiro viajante, fora tentar a sorte no Peru depois de renegado no Real Madri.

A rigor, Marinho Rodrigues não estava preocupado com o uniforme que o Botafogo iria utilizar. O ex-zagueiro direito, substituto imediato de Rubinho na campanha de 1948, sabia que Flávio Costa, o “professor”, iria armar o Flamengo de maneira diferente e isso sim o colocava em estado de alerta. No lugar do já velho e surrado 4-2-4, Flávio certamente escalaria três homens no meio de campo – Carlinhos, Nelsinho e o jovem Gérson, pela canhota. O técnico rubro-negro sabia que teria de bloquear o setor adversário, que sempre contava com três jogadores a partir do momento em que Zagallo desembarcara em General Severiano, em 1958, logo após a Copa do Mundo da Suécia. Marinho queria apenas que o Botafogo não mudasse seu esquema. Mesmo precisando da vitória para conquistar o bicampeonato, seu time iria fica jogar fechado, explorando os contra-ataques. E, de certa forma, não era difícil enfrentar o Mais Querido, sempre eufórico, empurrado pelos gritos de guerra de seus torcedores.

O esquema do “professor” ficou claro. Além de escalar Gérson no meio de campo, ele acabara de escolher o também jovem Espanhol para jogar na ponta-direita. O técnico estava convencido de que Espanhol, rápido e habilidoso, faria um carnaval pelo setor esquerdo do Botafogo. Rildo era bom marcador, mas certamente faria as habituais faltas, parte intrínseca de seu repertório. E se Nilton Santos, aos 37 anos, quase 38, viesse socorrê-lo na condição de quarto-zagueiro, abriria uma avenida para Henrique e Dida, que teriam apenas o veterano Jadir (ex-Flamengo) pela frente no meio da área.

Flávio sabia ainda que o alvinegro teria quatro desfalques: três na prática e um psicológico. Joel Martins, ex-Bangu, contundido, homônimo do ponteiro rubro-negro, seria substituído por Paulistinha na lateral-direita. Zé Maria, machucado, havia cedido seu lugar justamente a Jadir. E Arlindo, o garoto de ouro dos juvenis da época de Jairzinho e Roberto, também sentira a perna. Em seu lugar jogaria o pé-de-coelho Edson Praça Mauá, campeão de 1957. O problema psicológico, obviamente, seria a dor da ausência de Didi. Que clube resistiria à ausência de um Didi? Flávio Costa só não contava com Garrincha, com o desequilíbrio técnico e tático que teria pela frente.

E Garrincha, naquela tarde quente, exagerou na dose.
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Naquele sábado o eterno Manoel Francisco dos Santos, então com 29 anos completados em outubro – faria, com a mais absoluta e convicta das certezas, a última grande partida de sua encurtada vida (1933-1982). Garrincha não fez chover, apesar do tempo encoberto e do calor que quase sufocou os 145 mil pagantes e – é sempre bom lembrar – abafou os 10 jogadores obrigados a vestir camisas de mangas compridas. Mas jogou como nunca, como para gravar com letras de ouro sua passagem pelo glorioso Botafogo de Futebol e Regatas. A rigor, Garrincha, Édson e Zagallo dobraram apenas os punhos. Mas Quarentinha e Amarildo, literalmente, arregaçaram as mangas para enfrentar, como sempre – ontem como hoje – o adversário e a empolgada e imensa torcida rubro-negra. Quem esteve no lotado Maracanã daquele dia viu uma espécie de canto do cisne de um dos melhores jogadores do mundo. A partir de 1963, a artrose corroeu ainda mais as pré-existentes degenerações nas extremidades ósseas de suas fíbulas e fêmures. Artrose avançada e irreversível diagnosticada pelo brilhante reumatologista Nélson Senise (1918-2001), contratado pelo Juventus, após a Copa de 1962, para um diagnóstico definitivo sobre o verdadeiro estado físico do jogador. O alvinegro de Turim queria Garrincha, mas desistiu ao saber da gravidade da artrose.

Até hoje o improvisado 4-3-3 de Flávio Costa é discutido. Para uns, simplesmente não deu resultado porque Garrincha desequilibrou totalmente o jogo. Para Gérson, o Canhotinha de Ouro, Flávio Costa só escalou para dar o primeiro combate a Garrincha, fazendo uma espécie de guardião do lateral-esquerdo Jordan. E Gérson, que no ano seguinte iria parar em General Severiano, comprado por Cr$ 150 milhões à vista – o Botafogo vendera Amarildo ao Milan e enchera os cofres – sua missão era simplesmente impossível. E até hoje ele diz:

– Brincadeira…Como é que eu ia marcar aquele cara, certo?

Com Armando Marques na arbitragem, o Botafogo, todo agasalhado, meias e calções negros – Aloísio vetara as meias cinzas de 1957 – e camisas de mangas compridas entrou em campo com Manga, Paulistinha, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Ayrton, Édson e Zagallo; Garrincha, Quarentinha e Amarildo.
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O Flamengo, com seu uniforme tradicional, pisou o gramado do Maracanã com Fernando, Joubert, Vanderlei, Décio Crespo e Jordan; Carlinhos, Nelsinho e Gérson; Espanhol, Henrique e Dida. O jogo foi Garrincha e Garrincha foi o jogo . Logo aos 10 minutos, Ayrton pegou o rebote de um ataque rubro-negro e lançou Mané entre Gérson e Jordan. O número sete alvinegro passou de passagem por seu marcador, entrou na área e chutou de pé direito no canto direito de Fernando. Aos 35 a jogada se repetiu, sempre com Ayrton, meias arriadas, procurando Garrincha. Dessa vez, porém, Mané perdeu o ângulo e quase da linha de fundo bateu forte para a área na esperança de encontrar Quarentinha ou Amarildo, que estavam no lance. Caprichosamente, o chute de Garrincha passou pelo goleiro Fernando, bateu no nariz de Vanderlei e entrou: 2 a 0 Botafogo. Agora, para chegar ao título, o Flamengo precisaria de dois gols.

O terceiro e último gol, que encerrou as esperanças rubro-negras, veio logo aos dois minutos do segundo tempo e merece uma descrição toda especial. Amarildo, jogando com uma proteção na coxa, recebeu na intermediária e tocou de imediato para Zagallo, nas costas de Joubert. Zagallo, quase da linha de fundo, centrou alto sobre o meio da área. Quarentinha, acrobático, acertou em cheio uma tesoura voadora da marca do pênalti e a bola explodiu no peito de Fernando. Por fim, Garrincha, que corria livre pela direita, só teve o trabalho de aproveitar o rebote de Fernando e empurrar a bola para o fundo das redes no gol à esquerda das tribunas.

O lance foi tão rápido, tão inesperado, que o experiente narrador Oduvaldo Cozzi – um dos mais brilhantes do rádio esportivo brasileiro – se confundiu todo. Cozzi pegou a tabela Amarildo-Zagallo e o chutaço de Quarentinha (que ele chama de Quarenta na descrição do lance). Mas não apanhou a entrada fulminante de Garrincha. Quem corrige o narrador é o ponta Otávio Name (1934-1978), que tempos depois seria redator do Jornal do Brasil, ao lado de nomes famosos como João Máximo, Oldemário Vieira Touguinhó, Marcos de Castro, José Inácio Werneck, Antônio Maria Filho, João Saldanha e Sandro Moreyra e, de maneira bem mais modesta, o locutor que vos fala. Os últimos momentos da partida na voz de Oduvaldo Cozzi são espetaculares. Quase dois minutos de posse de bola de Garrincha, cercado por Carlinhos, Jordan e Gérson, no espaço mínimo de um metro quadrado. Só quem tem essa fita histórica pode ter idéia das mágicas de Mané.

Nos últimos minutos, o jogo descambou ligeiramente para a violência. Paulistinha e Dida – já falecidos – trocaram pontapés e foram expulsos por Armando Marques. Sobre a arbitragem por sinal, um detalhe: preocupado com o clima do jogo, Armando Marques jamais correu para o meio do campo nos três gols do Botafogo. Correu, sim, para apanhar a bola aninhada na redes, dando à torcida alvinegra a impressão de que o lance fora impugnado. Anos depois, ele reconheceu o equívoco, que fez com que muitos torcedores cortassem o grito de gol. Na época, Armando Marques reconhecia seus erros.

Um detalhe. Garrincha, ao final da partida, declarou que não sentiu calor:

– Calor? Que calor? Estou acostumado a jogar no sol. Na sombra é mole…

fonte: Blog do Roberto Porto

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