Armando Nogueira viu a Hungria jogar em 1954 e ficou maravilhado. Só falava de Puskas, e Kocsis, e Czibor. Nelson Rodrigues deitava e rolava com o deslumbramento do amigo. “Armando, como um time tão bom perdeu para uma seleção cintura-dura?” E ironizava, chamando os míticos magiares de “a Hungria do Armando”.
Quase ninguém no Brasil viu a Hungria do Armando jogar, mas durante décadas se falou daquele timaço assim, a Hungria do Armando. Lembrei disso ao ver David Coimbra afirmar no Redação Sportv que o melhor centroavante do mundo foi Laerte, o Urso. David já escreveu sobre as qualidades de Laerte, dentre as quais o chute mortal e a estatura de um metro e setenta e três, a altura dos craques. O único senão de Laerte, diz David, era que só jogava com as vestes de Próspera e Criciúma, os times da Capital do Carvão. Bastava vestir outra camisa e perdia seus poderes, passava a ser um centroavante fútil, cotidiano e tributável. Deixava de ser Laerte, o Urso, para ser Laerte, mais um na multidão.
Algumas pessoas devem ter se perguntado: “Seria Laerte mais um dos personagens do David? Mais uma daquelas criaturas que das ruas do IAPI desvendam os mistérios do mundo?” Em verdade, vos digo: Laerte, o Urso, existiu. Eu o vi jogar e atropelar zagueiros com seu corpo ursídeo. Ele parece, mas não é um personagem de David Coimbra.
Laerte Aracy Sérgio nasceu em Urussanga, em 26 de agosto de 1957. Em 1978, ainda garoto, fez alguns jogos pelo Comerciário, que no 17 de março daquele ano passou a se chamar Criciúma Esporte Clube. Laerte, o Urso, fez o primeiro gol da história do Criciúma que ainda não era Tigre, porque vestia azul. E foi fazendo gols, o Urso, de todos os jeitos. Quando deixou o estádio Heriberto Hülse, em 1981, era o maior artilheiro da história do Criciúma, com 54 gols.
A primeira vez que vi Laerte foi quando ele veio a Lages, enfrentar o Inter. Já era o temido Urso. E no Inter de Lages tinha um zagueiro chamado Eduardo, cara de bandido e porte de xerife, morava no bairro Morro do Posto, e por isso era chamado de Eduardo, o Xerife do Morro do Posto.
Foi o duelo anunciado, como dois pistoleiros que fossem se encontrar ao cair do sol. Laerte, o Urso, versus Eduardo, o Xerife do Morro do Posto. “Não vai sobrar pedra sobre pedra”, anunciava o narrador Aldo Pires de Godói na Rádio Clube, chamando o povo para estádio Vidal Ramos. O povo foi. Eu fui. E vi.
Foram vinte e quatro minutos intensos. Pernadas, puxões nas camisas, cotoveladas. O Urso e o Xerife se engalfinhavam, caíam no chão, levantavam poeira. Vinte e quatro minutos um contra o outro, sem que nenhum dos dois tocasse na bola. Havia o jogo, lá longe, e o duelo. Eu assistia ao duelo.
De repente, Eduardo se viu sozinho. Olhava para os lados e não via o Urso, que sumira como num passe de mágica. Ouviu um palavrão berrado pelo goleiro Luiz Fernando Xixi e olhou para trás. Era o Urso, matando a bola no peito antes de estufar as redes coloradas no vigésimo quinto minuto da peleja. Ele ainda fez mais um, e o Inter só empatou em três as três porque era um bom time, liderado por Mikimba, tio do Ronaldinho Gaúcho que ainda nem pensava em nascer.
Tergiverso. O assunto é Laerte, o Urso. Se marcasse com qualquer camisa os gols que marcava pelos times de Criciúma, teria jogado com Pelé no Cosmos, com Falcão na Roma, com Platini na Vecchia Signora do Lédio Carmona. Aliás, se ele pudesse viajar no tempo e pegar a vaga de Puskas na Hungria de 1954, e se a Hungria jogasse com a camisa azul do Criciúma, o mundo seria diferente hoje, e ninguém faria troça com Armando Nogueira e David Coimbra. Aquela seria a Hungria de Laerte, o Urso, campeã mundial de 1954.
Obs.: Laerte, eterno nos corações dos criciumenses e do David Coimbra, morreu em abril de 2004. Mais sobre o Criciúma e sobre o Urso no Almaque do Criciúma, a ser lançado pelo João Nassif no final do ano. Texto meu, originalmente publicado no blog do Lédio Carmona.