Ezequiel Fernández Moores(AFP)
Buenos Aires, Argentina
“Em minha própria terra, senti, eu juro, o pior de tudo… Todo mundo falando a mesma coisa: ‘este traidor da pátria, por que vem aqui…'”. Rodulfo Manzo nem sequer pode escapar à vergonha em San Luis de Cañete, a 140 km de Lima, sua terra natal. Confessou há alguns anos. Mas essa vergonha ameaça persegui-lo por toda a vida. Manzo foi um dos zagueiros-centrais da seleção peruana que foi goleada em 6 a 0 pela Argentina na Copa de 1978, em uma das partidas mais escandalosas da história das Copas do Mundo e cujos fantasmas foram resgatados esses dias por Fernando Rodríguez Mondragón.
O filho de Gilberto Rodríguez Orejuela e sobrinho de Miguel Rodríguez Orejuela, líderes do Cartel de Cali, revelou um dado inédito ao assegurar que o narcotráfico contribuiu com dinheiro para subornar o Peru. Saberá por acaso se o Cartel de Cali tinha algum vínculo com hierarcas da ditadura que governava a Argentina e com alguns de seus membros interessados em que o mundial servisse de plataforma a suas ambições políticas?
Esse suposto vínculo, que me foi sugerido anos atrás por fontes ligadas à própria ditadura, teria servido à goleada de 6 a 0 que permitiu à Argentina estar à frente do Brasil por melhor saldo de gols e classificar-se para a final do mundial que aconteceu em sua própria casa. Jamais houve evidências concretas. Mas os próprios jogadores reabriram as portas às suspeitas em torno do desenvolvimento e do resultado final desta partida, fundamental para que a Argentina ganhasse justamente esse Mundial, para a alegria não só de seu povo, mas também da sangrenta ditadura comandada pelo general Jorge Rafael Videla.
Ainda tenho fresca a imagem de Juan Carlos Oblitas, outro integrante daquela seleção peruana, quando o perguntei sobre essa partida na tribuna de imprensa no Estádio Azteca, no dia da abertura da Copa do México de 86. “Essa partida não foi normal, nessa partida houve coisas raras”, revelou Oblitas.
Já no ano de 1982, numa investigação que realizei para a Rádio Continental, de Buenos Aires, o falecido jornalista argentino Carlos Juvenal contou que, depois do 6 a 0, encontrou-se com um grupo de jogadores peruanos no centro de Buenos Aires e que o próprio capitão da equipe, Héctor Chumpitaz, lhe confessou sobre “um dinheiro adicional”, mas completou que nunca o admitiria em público.
Chumpitaz, é claro, sempre rechaçou as suspeitas. O fez inclusive há alguns dias, logo quando houve a denúncia do colombiano Fernando Rodríguez Mondragón e o havia desmentido em outro programa de investigação cujo roteiro escrevi e que foi transmitido em 2003 pelo canal Telefe da Argentina, logo retransmitido em diversos países pelo History Channel (“A festa paralela”).
Foi nesse mesmo programa que Manzo, então um humilde pedreiro, contou que até seu próprio povo o chamava de “o vendido”. Por que ele e não outro dos jogadores peruanos que atuaram naquela partida? Ocorreu que um ano depois, comprado pelo clube argentino Vélez Sarsfield, Manzo, numa conversa informal sobre aquele 6 a 0, respondeu uma piada em Buenos Aires afirmando que a Argentina teve que pagar em dinheiro para lograr essa goleada. Só horas depois teve que assinar uma retratação diante das câmeras de TV assegurando que jamais havia dito isso.
Também o goleiro argentino daquela seleção peruana, Ramón Quiroga, rachaçou sempre as suspeitas sobre sua figura, mas não sobre a de outros. “Dos que agarraram a grana, vários morreram e outros morreram para o futebol”, disse Quiroga, numa entrevista ao diário La Nación, de Buenos Aires, do dia 8 de outubro de 1998, que logo, igual a Manzo, se encarregou de desmentir.
“Nesta partida jogou (Roberto) Rojas, um tipo que nunca havia jogado. Ele morreu em um acidente… Marcos Calderón morreu na queda de um avião”, seguiu Quiroga na entrevista. E adicionou que no intervalo dessa partida ele e também Chumpitaz pediram a Calderón que tirasse Manzo, porque “não parava ninguém. No gol de (Alberto) Tarantini, o “Negro” Manzo agachou-se e o deixou sozinho. Não sei nem por onde anda Manzo agora. Era um bom jogador, mas não o queríamos”.
Quiroga afirmou que contra a Argentina “jogaram jogadores que não haviam estado em nenhuma outra partida”, e mencionou Raúl Gorriti (“que entregou o quarto ou quinto gol”), a Roberto Rojas e o próprio Manzo, e admitiu que a equipe peruana estava dividida entre os jogadores do Alianza Lima de um lado e os do Sporting Cristal de outro.
Tão dividido estava o time que Calderón foi pressionado por uns jogadores para que não incluísse Quiroga nessa partida, dada sua condição de argentino, mas que o goleiro se manifestou seguro de poder atuar sem pressões e por isso foi finalmente incluído pelo treinador. Vários gols foram feitos debaixo de seu nariz, por rivais sem qualidade. Mas também é certo que, depois daquela goleada e durante muitos anos, no Brasil, cada vez que um goleiro cometia erros grosseiros, dizia-se que era “um Quiroga”. Quinze dias depois do Mundial, a Argentina do general Videla, que antes da partida tinha ingressado ao vestiário peruano junto com o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, “outorgou um crédito não reembolsável” ao Peru “para a aquisição de quatro mil toneladas de trigo a granel”, segundo publicou o diário La Razón daquele dia, na sua página 11 e sob o título “Trigo”. Essa doação, segundo afirmou o escritor inglês David Yallop em seu livro de 1999 “How they stole the game” (“Como eles roubaram o jogo”), formou parte do suposto acordo da ditadura argentina com a peruana, cuja seleção, a pedido do técnico Calderón, atuou nessa partina com a camiseta alternativa (vermelha), “para não passar vergonha com a tradicional alvi-rubra”.
Yallop cita como autor do suborno o almirante Carlos Lacosta, homem forte da ditadura na organização do Mundial, logo premiado pela Fifa, que o designou vice-presidente. Lacoste, falecido em 2004, era mão direita do almirante Emilio Massera, por acaso o mais sanguinário e mais ambicioso politicamente dos três integrantes da Junta Militar que comandava a Argentina. Contra Lacoste e Massera apontou também o então Secretário da Fazenda da Argentina, Juan Alemann, crítico dos gastos que demandava o Mundial e que teve uma bomba explodindo em sua casa, localizada a metros de uma sede policial no elegante bairro Norte de Buenos Aires, no mesmo momento em que a Argentina marcava seu quarto gol no Peru. Era o gol que bastava para classificar-se como finalista do Mundial. “Quem armou toda essa operação sabia que iam ter quatro gols”, disse Alemann no documentário de TV “A festa paralela”.
Poucos sabem que a ditadura argentina já havia se interessado pela seleção peruana alguns meses antes da Copa, quando a equipe conseguiu a classificação para o Mundial diante do Chile, onde mandava o ditador Augusto Pinochet, de pouca afinidade com os militares argentinos. Fato confirmado pelo conflito de Beagle que quase acarretou uma guerra, no fim daquele mesmo 1978. Não agradava à Argentina de Videla e Massera que o Chile jogasse em seu Mundial. E a Junta se interessou, portanto, vivamente, pela classificação do Peru.
O técnico César Luis Menotti e o goleiro Ubaldo Matildo Fillol juraram até por seus filhos, no documentário de TV, que o triunfo era legítimo. Recordaram que a Argentina já tinha vencido com facilidade o Peru, em Lima, num amistoso pouco antes do Mundial e que, quando se enfrentaram no torneio, o Peru era uma seleção debilitada pelas lesões e pelo cansaço e que só queria voltar a seus país.
Mas o testemunho mais notável foi de outro jogador, Osvaldo Ardiles, peça-chave daquela Seleção Argentina e ex-técnico do Huracán: “Se vocês me perguntam se a Junta Militar fez algo, eu vou te dizer que não sei, mas essa gente estava preparada para fazer absolutamente tudo. Tomara que não tenham feito nada, que o triunfo tenha sido simplesmente esportivo. Se não tivesse sido assim, me sentiria muito mal, estaria pensando provavelmente em devolver minha medalha”.