Em dezembro de 1922, Uberaba recebeu a visita de um Combinado Carioca, formado por jogadores filiados a clubes da Liga Metropolitana, para a disputa de duas partidas contra os principais clubes da cidade, o Uberaba Sport e a Associação Athlética do Triângulo (ex-Red and White Association). As partidas foram motivo de muita polêmica na imprensa brasileira, repercutindo por todo o final do ano de 1922. Segundo os jornais da época, o conjunto carioca foi formado às pressas e, por isso, não representava a força do futebol do então Distrito Federal. Diziam que os cariocas estavam em Uberaba a passseio, sem treino e cansados da viagem, para justificar os maus resultados que acabaram por colher na cidade.
A idéia da realização das partidas surgiu em uma visita de Oswaldo Gomes, então presidente da Confederação Brasileira de Desportos, a Uberaba. Oswaldo se comprometeu a reunir, se fosse possível, alguns dos mais renomados jogadores do futebol carioca e prometeu vir ele próprio chefiando a delegação. Foi o que bastou para se criar uma imensa expectativa em Uberaba. O Lavoura e Comércio, de 23/11/1922, noticiava que atletas como Kuntz, Palomone, Oswaldino, Almeida Netto, Brillhante e Welfare, além do uberabense Junqueira poderiam fazer parte do Selecionado Carioca.
Mas no Rio, a dificuldade para se conseguir jogadores que concordassem em fazer a excursão era enorme. Por fim, a organização do grupo coube ao velho esportista Antônio Carneiro de Campos, do Flamengo, aposentado dos gramados há cerca de dois anos, que foi obrigado a participar também como jogador, graças à desistência de última hora do meio campista Frederico, do Bangu. A embaixada Carioca contava ainda com o Dr. Souto Castagnino e Luiz Vianna, redator do Correio da Manhã, a quem coube fazer as matérias sobre a excursão, e que acabaria apitando o jogo do combinado carioca contra o Uberaba.
Não era, de fato, uma Seleção Carioca. Alguns bons jogadores, mas nenhum dos “cracks” sonhados pela imprensa uberabense.
Eis a relação dos jogadores do Combinado Carioca:
Waldemar – Goleiro do São Cristóvão
Antonico (Antônio Carneiro Campos) – Zagueiro do Flamengo
Bráulio – Bangu
Luiz Antonio (Luiz Antônio da Guia) – Zagueiro do Bangu e irmão mais velho de Domingos da Guia.
Joppert (Antenor Silva) – Meio campista do Bangu
Tatá (Oswaldo Silva) – Meio campista do Bangu
Gabriel (Gabriel Nascimento) – Mangueira
Zezé (José Carlos Guimarães) – Atacante do Fluminense
Chiquinho – Atacante do América
Simas – Atacante do América
Antenor (Antenor Vicente Correa) – Atacante do Bangu
O fato é que a viagem do Rio de Janeiro a Uberaba durou estafantes 32 horas, com escalas em São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto. Enfim na cidade, os bravos atletas foram recepcionados na Estação da Mogiana e seguiram até o Hotel Toscano, muito criticado pela imprensa carioca pela precariedade das instalações.
Os dois clubes uberabenses, por sua vez, viviam um momento delicado de sua rivalidade. A Associação havia perdido o denominado “Jogo do Século” contra o Uberaba, mas ganhou os pontos por ter o rival escalado de maneira supostamente irregular o atleta Hildebrando de Moraes. Revoltados com a decisão do Comitê Disciplinar da Sub-Liga do Triângulo, que ajudaram a fundar, os dirigentes do Uberaba retiraram o clube do Campeonato do Triângulo, facilitando o caminho do rival rumo ao título.
O primeiro jogo foi disputado contra a Associação (RED). Extenuados pela longa viagem os cariocas foram presa fácil para o recém coroado “Campeão do Triângulo” e perderam por 3×1. O Uberaba, que acabara de vencer novamente ao RED em jogo amistoso realizado poucos dias antes, esperava também bater o combinado visitante. Nesse jogo, o árbitro escolhido pelos cariocas foi o jornalista Luiz Vianna, redator do jornal “Correio da Manhã”, que talvez previnido pelos recém conquistados amigos do “Red”, atuou, segundo ele próprio, de modo a impedir o jogo violento por parte dos jogadores do Uberaba. Enfrentando um adversário mais descansado e mais entrosado, o Uberaba não conseguiu vencer, empatando em dois gols.
Para Luiz Vianna, a imensa rivalidade entre os dois principais clubes de Uberaba extrapolava qualquer análise meramente esportiva. O redator opinou que não entendia como a Associação não conseguia vencer o Uberaba, coisa que só se explicaria pela violência com que o Uberaba disputava suas partidas. E Vianna foi além. Seus comentários sobre o médio uberabense Badu (Egydio Matheus Junior) acabariam, nos dias de hoje, em sua prisão, dado o imenso preconceito racial explícito em suas palavras:
..Um negrão boçal, narinas super dilatadas, voz cavernosa, chegou se ao juiz, e numa attitude francamente ameaçadora disse: – O que isso “sô” juiz? Ponha a mão na “conciença”moço. Foi “fisaide”…
O bate boca seguiu pelos maiores jornais do país à época. Em uma carta enviada à Folha da Noite, Badu se defendia das colocações de Vianna:
“De facto, não sou branco, mas isso não é uma desonra para mim. Quanto à minha “boçalidade”, parece que ella não é tão grande como disse o Sr. Vianna. Porque, afinal de contas, eu tenho a competência de defender a mim, à minha terra e ao meu club das calumnias assacadas por um cocaínomaníaco. Se essa defesa não é literatura fina, serve ao menos para provar que eu não sou tão burro como o Sr. Vianna”.
Os jornais fizeram também graves acusações contra o zagueiro uruguaio Villa, defensor do Uberaba, que teria visitado a delegação no Hotel e se insinuado para entregar o jogo e criticaram a indiferença com que foram tratados os cariocas pela diretoria do Uberaba Sport.
Um final de ano conturbado onde a rivalidade entre o Uberaba e o “RED” atingiu um alto nível de animosidade e fez com que as equipes crescessem juntas. Mas parece que o esforço foi grande demais. Já no ano seguinte, sucumbiu o “RED” e quase morreu o Uberaba Sport.
Fichas Técnicas:
10/12/1922
A.A. Triângulo 3×1 Combinado Carioca
Local: Estádio da AAT, Uberaba – MG
Árbitro: Aristides Cunha Campos
Red: Emile, Bado e Pereira; Luiz, Maurício e Américo; Ramid, Vinhola, Machado, Carnaval e Otacílio.
Cariocas: Waldemar, Antonico e Bráulio; Tatá, Joppert e Luiz Antônio; Gabriel, Zezé, Chiquinho, Simas e Antenor.
Gols: Machado (2) e Vinhola; Antenor.
12/12/1922
Uberaba 2×2 Combinado Carioca
Local: Estádio das Mercês
Árbitro: Luiz Vianna
Uberaba: Pino, Villa e Mário; Badú, Tango e Walter; Gumercindo, Targino, Walfredo, Salim e Fortes.
Cariocas: Waldemar, Antonico e Bráulio; Tatá, Joppert e Luiz Antônio; Gabriel, Zezé, Chiquinho, Simas e Antenor.
Gols: ? (1º T) e Walfredo (2º T); ? (1º T) e Simas (2º T)
Curiosidades:
Profissão dos jogadores do Uberaba em 1922:
Walter Fonseca, negociante
Badu, empregado da Casa Caldeira
Walfredo Vieira, empregado de Francisco Ricioppo e Cia.
Antônio Targino, Construtor e pedreiro
Generoso Fortes, Caixeiro do Bazar Modelo
De Marco, zagueiro, empregado da Livraria Seculo XX, de Osório Augusto de Mello
Francisco Villanova, empregado de Andrade & Oliveira,
Tango, Guarda livros da Casa Gabarra
Edson Pino, goleiro, pintor
Fontes:
– Jornal Correio da Manhã, edições dos dias 19/12/1922, 20/12/1922 e 09/01/1923.
– Jornal Lavoura e Comércio, edições dos dias 23 e 26/11/1922, 07, 10 e 14/12/1922.
– Folha da Noite, Acervo Folha, Dez/1922