Década de 40. Éramos todos pequenos e foi na Rua Alice de Castro, uma ruazinha de cento e poucos metros que fica entre as ruas Morgado de Mateus e Joaquim Távora, a um quarteirão do Instituto Biológico de São Paulo, que se deu nosso primeiro contato com a bola. As traves dos gols eram demarcadas por duas pedras de cada lado do “campo”. A rua de terra nos fazia voltar imundos para casa, ora empoeirados até a raiz dos cabelos, ora irreconhecíveis sob uma crosta de barro.
O futebol rapidamente virou paixão. Na rua encarnávamos as figuras de Bauer, Noronha, Leônidas, Baltazar, Brandãozinho, Cláudio, Luizinho, Jair e outros craques que só conhecíamos através das transmissões de rádio e por “retratos” na Gazeta Esportiva.
Quando chovia, nossa paixão se transferia para o futebol de botão, cada um com seu time – havia até Jabaquara, Juventus e Nacional. “Fabricávamos” os nossos jogadores com botões de roupa e tampas de relógios de pulso. Armávamos os times iguaizinhos aos de verdade. Sistema dois três cinco, que mudou para WM, sempre ao sabor dos técnicos da época. Tudo virava bagunça na mesa assim que os jogos tinham andamento.
Contávamos com transmissão ao vivo: o Nilton imitava os locutores da época. Por vezes, “metralhava” com a rapidez e os trejeitos vocais do Pedro Luiz. De outras, imitava as entonações do Geraldo José de Almeida. Vibrávamos quando ele irradiava o jargão “mata a bola no peito, rola na coxa, fuzila para o gol”, mesmo sem atinarmos como é que uma simples tampa de relógio pudesse realizar tais milagres.
No início dos anos 50, saímos à procura de um jogo completo de uniformes – camisas, calções e meias – inicialmente patrocinado pelo pai do Paulinho, mas que seria religiosamente devolvido com o pagamento das mensalidades. Na loja só encontramos o uniforme do carioca Vasco da Gama, camisa preta com a listra diagonal branca. Nascia o Vasquinho. Que virou Vasquinho da Vila Mariana.
Instalamos nossa sede no quarto de empregada da casa do Paulinho. Tínhamos até diretoria, eleita “democraticamente” de acordo com o maior ou menor grau de amizade do dono da sede. Cada jogador (ou sua mãe) ficava responsável pela lavagem do uniforme, que devia estar impecável no dia do próximo jogo. O que nem sempre ocorria.
Treinávamos e jogávamos em um campinho completamente fora de medidas e de proporções, na Rua França Pinto, e que além de tudo era inclinado para um dos lados. Um chute mais forte para fora e um dos nossos era intimado a correr morro abaixo para buscar a bola.
Com o tempo, o Vasquinho ganhou fama. Surgiram até espectadores, que ficavam ao redor do campinho. Também jogávamos “fora de casa”: disputamos partidas nos Colégios São Bento, São Luiz, Arquidiocesano, no Ipê Clube, em um terreno baldio da Rua Humberto Primo, na Vila Guarani e em outros bairros.
Lentamente, começaram as perdas. Perdemos nosso campinho da Rua França Pinto, lá começaram a construir casas. Perdemos alguns jogadores, que mudaram de bairro ou foram convidados a jogar em outros times. Perdemos o interesse pelo futebol de botão, trocado por brincadeiras mais interessantes e que já admitiam – oh, heresia! – a participação de meninas.
Em um triste domingo, não conseguimos mais reunir jogadores em número suficiente. Nós nos dispersamos. O Vasquinho da Vila Mariana, nosso dream time da época, acabou. Restaram apenas as lembranças… e uma irracional paixão pelo futebol.
Que isso ninguém nos tira.
Julio Ernesto Bahr
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