[img:domingos_da_guia.jpg,thumb,vazio]
Domingos sintonizou o rádio para acompanhar a grande final entre Bangu e Flamengo. Afinal, ele havia dado seus primeiros chutes jogando pelo grêmio suburbano, e seu coração era Bangu de verdade.
Isso foi no final da década de 20, os treinos eram feitos após a sua jornada de trabalho como tecelão na fábrica de tecidos. Essa fábrica, aliás, era a geradora de renda e empregos em Bangu, e o clube fora fundado em razão da sua existência. Naqueles tempos, Domingos era mais um do clã dos Da Guia a tentar a sorte no futebol.
Antes dele vieram os irmãos Ladislau e Mamede, chamado de “Médio”, e Luiz Antônio, todos no Bangu. Sabemos bem aonde Domingos chegou. Todos os adjetivos sobre ele foram esgotados, o maior beque do Brasil, “o divino mestre”. A bola que seguia o seu comando, como se ele tivesse um imã em seus pés. “A estátua noturna”, sereno e apolíneo mesmo no meio do mais selvagem dos ataques inimigos. Luiz Antônio, mais velho, foi melhor do que Domingos, um jogador sensacional, nas palavras do próprio irmão caçula. Mas os louros e a condição de mito ficaram com Domingos, que, antes de virar ídolo, trabalhou também como ladrilheiro e mata-mosquitos.
Infelizmente, Domingos não conseguiu ser campeão com o Bangu. Em 33, ele já estava no Nacional do Uruguai, já era craque da seleção brasileira.
[img:o_divino_mestre.jpg,thumb,vazio]
Foi nesse ano que o quadro suburbano amealhou a sua maior glória: campeão carioca, o primeiro da era profissional. Ladislau, cuja alcunha era “tijoleiro”, graças à potência de seus chutes, fazia parte do plantel, assim como Médio, e vários outros atletas negros. Dizem que os loucos abrem os caminhos que mais tarde serão trilhados pelos sábios. Nesse caso, a contribuição em quebrar barreiras raciais foi um notável mérito do Bangu.
O técnico Luis Vinhaes até tentou implementar uma culinária mais sofisticada nas concentrações, mas a rapaziada pedia o bom e velho feijão.
Era um grupo operário e humilde, que teve o Fluminense como contendor na final do campeonato. A zaga suburbana era um osso duro de roer. Euclides no gol, Mário ou Camarão e Sá Pinto. No meio tinha o Santana e o Médio, e o ataque contava com Sobral, Ladislau, Plácido e o goleador Tião. Embora todos previssem o contrário, inclusive o jornalista Mario Filho, a taça foi mesmo parar em Bangu. Após uma estrondosa goleada de 4 a 0, a história estava escrita nas cores vermelho e branco. A festa na chegada dos jogadores ao subúrbio foi algo de proporções avassaladoras. Diz a lenda que os estoques de cerveja nos botecos terminaram, consumidos pela torcida em êxtase. Foguetes estouraram até a madrugada, como se fossem trovões dos deuses do futebol, reconhecendo a façanha antológica de um Davi contra um Golias.
Campeão Carioca de 1966
[img:bangu_campeao1966.jpg,thumb,vazio]
Foi o típico caso de uma ilusão que virou verdade. O tempo revelou que aquele fora um ano único, pois o Bangu não mais ergueria o caneco. Até que em 1966 os ventos pareciam estar mudando novamente. O grêmio suburbano vinha com tudo, comandado pelo técnico argentino Alfredo Gonzáles. Domingos acompanhava o trabalho de Alfredo, ambos haviam jogado juntos no Boca Juniors e no Flamengo. O rosto do argentino era branco como se fosse de cera, contrastando com olhos negros e fundos. Ele herdara aquele time quando Zizinho teve que sair por questões particulares. Mestre Ziza, porém, deixara algumas boas jogadas ensaiadas, como a tabela em “X” entre Paulo Borges e Cabralzinho.
O Maracanã seria o palco da final. O Flamengo era o franco favorito para ganhar o bi-campeonato. O juíz apita o início da partida. Espantosamente, o Bangu começa a enfiar gols. Ocimar. Aladim. Paulo Borges. Domingos atento ao pé do rádio. O baile era tremendo, os nervos foram ficando à flor da pele. De repente, um choque entre Ladeira e o rubro negro Paulo Henrique. O sururu está formado. Almir Pernambuquinho, valente como só ele, briga como um leão, até ser contido pelo goleiro Ubirajara do Bangu.
[img:briga_de_Almir.jpg,thumb,vazio]
Vários jogadores são expulsos, o jogo termina por ali mesmo. Os jornais sentenciam o nascimento de uma nova mística. A mística da camisa suburbana, desmanchando, ainda que em uma fugaz oportunidade, o poder do manto sagrado rubro-negro.
Domingos desliga o rádio. Na sua casa em Bangu, ele vai dormir feliz.
Fonte: Lúcio Humberto Saretta é escritor e mora em Caxias do Sul/RS
Pesquisa de imagens