Muitas vezes Garrincha contou esta história, divertindo-se com as agruras pelas quais passou Quarentinha numa partida do Botafogo com o Vélez Sarsfield, da Argentina, na década de 1960. Logo nos primeiros minutos, o goleiro adversário riu na cara do atacante brasileiro, que chegou para o companheiro de time e disse: “Mané, esse goleiro está me sacaneando. Me rola uma daquelas, que vou enfiar esse cara para dentro do gol com bola e tudo”. Feito: o ponta foi à linha de fundo e cruzou na medida, mas Quarentinha chutou o chão, e a bola foi pererecando para as mãos do argentino, que fez um gesto de negativo, com a cabeça.
No intervalo, ele só faltou implorar: “Pelo amor de Deus, Garrincha, me deixa frente a frente com aquele goleiro”. O objetivo de Quarentinha, que tinha uma bomba no pé esquerdo, era acertar o peito. Se a bola entrasse depois, melhor.
No segundo tempo, sempre bem municiado, tentou mais umas três vezes, mas o chute não saía como queria. Numa delas, ao furar de forma bisonha, o argentino riu alto. A cabeça de Quarentinha – bastante grande, por sinal, o que lhe valeu os apelidos de Cabeção e Cabeçudo, dados por (quem mais?) Garrincha – só faltou explodir de raiva.
A um minuto do fim, houve uma falta na meia-lua. Quarentinha se apressou a pôr a bola na marca, com carinho. “Desta vez arranco a cabeça daquela cara”, falou, entre dentes. Tomou enorme distância, apertou o laço da chuteira, suspendeu as meias, deu mais uma olhada terrível por cima da barreira, formada por sete argentinos, para saber onde estava o goleiro. O juiz apitou. Ele bateu com a ponta da chuteira no gramado e partiu em direção à bola como um búfalo, ganhando velocidade. Mas, quando estava a três metros dela, Garrincha chutou. E fez o gol.
Todos correram para abraçar o autor do gol, que só pensava em fugir da fúria de Quarentinha. “Depois, no vestiário, com a vitória assegurada, consegui amansar a fera, dizendo que pelo menos ele não arrancara a cabeça do goleiro”, lembrava Garrincha, às gargalhadas.
Times dos deuses
Isso não é futebol. É outra coisa. Envolve o Botafogo, entre 1957 e 1962, um time escalado pelos deuses cansados da mediocridade terrena. Quarentinha, ou Waldir Lebrego – que tem sua trajetória narrada na biografia O artilheiro que não sorria(LivrosdeFutebol.com, 332 páginas, R$ 40), de Rafael Casé, lançada em dezembro de 2008– era um desses divinos. E não um perna-de-pau, como a história contada acima pode sugerir aos mais novos, obrigados a conviver com a Seleção do Dunga e o jogo sem graça visto hoje em nossos gramados (como pode o Campeonato Brasileiro, tido e havido como “o mais difícil e disputado do mundo”, estar prestes a ter o mesmo campeão – uma equipe sem craques, ainda por cima – três vezes seguidas?)
O jornalista Rafael Casé abre seu livro com estas palavras mais que apropriadas: “Entre a batida seca na bola e o estufar das redes, poucos segundos. Tempo suficiente, apenas, para o torcedor se preparar para festejar mais um gol de Quarentinha. Afinal, quando o pé esquerdo do maior artilheiro da história do Botafogo pegava de jeito na bola, o desfecho do lance era inevitável: trabalho, na certa, para o garoto do placar”. Foram 313 gols (cinco a mais que contabilizado anteriormente, de acordo com as descobertas do autor) em menos de 450 partidas com a camisa alvinegra. Na Seleção Brasileira, a impressionante média de quase um gol por jogo.
Durante um ano e meio, Casé fez o trabalho de reconstituição dos 62 anos da vida pessoal e profissional do jogador (que nasceu em Belém em 15 de setembro de 1933 e morreu no Rio de Janeiro em 11 de fevereiro de 1996). Além de entrevistar parentes, amigos e companheiros de gramado, pesquisou documentos nos lugares onde Quarentinha – que ganhou este apelido por ser filho de Quarenta, ídolo do Paysandu – viveu e trabalhou: Pará, Bahia, Rio, Colômbia e Santa Catarina. Entre o começo, no Paysandu, em 1951, e o término da carreira, no Náutico de Santa Catarina, defendeu as camisas de 11 clubes, entre os quais o Deportivo Cali. Mas o principal deles, sem dúvida, foi o Botafogo. Foram duas passagens por General Severiano: em 1954-55 e 1957-64, sendo campeão do Torneio Rio-São Paulo em 1962 e 1964 e do Campeonato Carioca em 1957 e 1962 (em 1961, fez parte do elenco, mas não jogou devido a problemas no joelho direito).
Tudo está, tintim por tintim, registrado na biografia, cujo maior mérito, no entanto, é uma revelação de caráter mais humano que esportivo. Entre os torcedores que viram o craque atuar, não há quem não se lembre de uma característica: a fria reação após os gols que marcava, por mais decisivos que fossem. A desculpa era a de que não fazia mais que a obrigação, pois ganhava para isso – aliás, uma ótima desculpa, além de um ensinamento para muitos jogadores atuais. Mas, na verdade, a atitude era fruto tão somente de… timidez.
João Saldanha que o diga. Ele gostava tanto de Quarentinha que o tratava como a um filho. Em seus primeiros tempos em General Severiano, o jogador custou a se adaptar, devido ao temperamento arredio e por enfrentar o preconceito dos cartolas. Escolhido capitão do time por Saldanha – após ter sido repatriado do Bonsucesso – mais de uma vez um e outro ouviram a frase sussurrada com maldade: “Onde já se viu um negro como capitão do Botafogo?”.
A decisão do Campeonato Carioca de 1957 selou para sempre a amizade entre o técnico e o atacante. João havia implantado no Botafogo o lema segundo o qual “quem não é o maior tem de ser o melhor”.
Na hora da verdade, entretanto, não foi bem assim. Aos trancos e barrancos, sem conseguir vencer um clássico sequer durante a competição, o time chegou à final com o Fluminense, considerado favorito ao título.
Os alvinegros, como sempre, apegavam-se à superstição. Carlito Rocha, o presidente do clube na última conquista, em 1948 – um tempo que já ia longe – reapareceu, munido de santos e rosários, para declarar que havia visto “o dedo de Deus apontar para o Botafogo como o herói da temporada”.
Mas foi Saldanha quem tratou de mexer seus pauzinhos aqui na terra, dando uma força para o Homem. Instruiu Quarentinha para colar em Telê, o cérebro tricolor. E exigiu que ninguém atrapalhasse Garrincha. Queria, no lado direito do ataque, um corredor livre, e todo mundo atento, principalmente o centroavante Paulinho Valentim, para aproveitar os cruzamentos de Mané.
Deu mais que certo. Mané deixou o dele. E Paulinho simplesmente comeu a bola, marcando cinco gols, o último dos quais fuzilando Castilho. Segundo o repórter Oldemário Touguinhó, que estava atrás do gol, o atacante teria perguntado ao goleiro antes de bater: “Quer que eu chute aonde, filho da …..?”. No fim, um placar de rima: 6 a 2 no pó-de-arroz.
Aquilo não era futebol. Era outra coisa.
Fonte:Alvaro Costa e Silva, JB Online